Dialética Crítica: Cleber Eduardo

O primeiro Dialética Crítica do ano é com um crítico e curador muito importante para a crítica e o cinema brasileiro, Cleber Eduardo. Ele foi crítico e editor na revista cinética e colaborou com inúmeros outros veículos. Está presente também em diversos catálogos e livros sobre cinema. Além de ter sido figura central na Mostra de Cinema de Tiradentes até 2019.

Cleber está sempre comentando sobre cinema no seu perfil no facebook, na cinética e você pode encontrar bastante da produção dele nos catálogos arquivados aqui.

A imagem do post é de uma foto de Beto Staino

ENTREVISTA

Euller Felix: Você coordenou o livro “O cinema brasileiro em resposta ao país (2016 – 2021)”, que foi um período político bem conturbado, com um desmonte das políticas culturais e de incentivo. Como surgiu a ideia desse livro e como você avalia os impactos sofridos no audiovisual como um todo nesse momento histórico?  

Cleber Eduardo: Fui chamado para organizar um livro que tivesse artigos de várias pessoas para marcar os 25 anos da Mostra de Tiradentes. 

Propus que o livro se desviasse do dever de ser sobre a  história de Tiradentes, não fosse sobre  os últimos 25 anos do cinema brasileiro, evitasse uma atitude institucional e celebratoria do evento e se concentrasse no cinema brasileiro daquele momento duro (2016 a 2022). O estímulo e desafio era ser uma publicação importante, por propor uma reflexão imediata e multifocal sobre um instante histórico em que o Estado do Brasil rompe unilateralmente com o Cinema no Brasil. Desde o início,  defendi uma publicação aberta a várias facetas, autorias e abordagens sobre as questões do cinema – e do audiovisual em geral – durante o período de trevas dos governos de Temer e de Bolsonaro. Foram propostas  duas linhas de frente para o livro: uma  relativa às questões estruturais do audiovisual brasileiro e outra com enfoque nas tendências e recorrências nos filmes, tanto as temáticas quanto as estilísticas.  O livro parte de um paradoxo.  Em um momento de tantas sabotagens ao cinema, o cinema reagiu com ou sem o apoio do Estado, tratou de existir como sua mais evidente forma de resistência, mas essa resistência tem também, além da existência apesar de tudo contra,  sua consciência histórica e formal nos filmes abordados no livro por tantas pessoas diferentes. É um cinema que responde.  E responde com aumento da presença de mulheres,  pessoas pretas, LGBTQIA+ e indígenas nas direções dos filmes, curtas principalmente, mas também nos longas. Quando o cerco se fechou, com Bolsonaro e a Covid, a bactéria e o vírus, o cinema partiu para cima. Nao só nos filmes, mas nos festivais, nas pesquisas em Universidade, na nova e diversa composição da crítica, nas plateias.  Existem muitas feridas e cicatrizes impostas pelo luto do governo federal contra o cinema, de mil maneiras, mas o cinema ficou de cabeça erguida,  mesmo quando de estômago apertado, e aumentou o tom de sua voz. Estruturalmente, foi lambança. Ainda haverá necessidade de mais tempo para recuperar as ruínas. Mas os filmes existiram e existiram com força. Os momentos de crise são ótimos estímulos criativos e alimentam as convicções,  mais que os bolsos, o que às vezes pode ser bom para os filmes, mas não para a atividade e para sua estrutura.

Euller Felix: Acredito que não só a produção cinematográfica do país tenha sido afetada, mas a crítica também, né? Como você observa a crítica que está sendo produzida nos anos/dias atuais?

Cleber Eduardo: Tendo a perceber neste momento histórico uma progressiva baixa de importância dos veículos de críticas ( jornais, revistas ou sites). Alguns veículos,  sobretudo especializados, eram marcas. Marcas  editoriais, identitárias, com senso de comunidade fechada.   Havia uma pegada, com todas as diferentes visões das diferentes pessoas das equipes, minimamente reconhecível. Não sei se estou exagerando. O tempo nos engana. Mas eu sinto que há alguma verdade aí, nessa perda de importância das marcas dos espaços,  sem considerar essa perda uma decadência,  antes uma mudança cultural e histórica na crítica. Também é preciso considerar que a crítica se espalhou, em textos e em vídeos, por muitos novos lugares, a ponto de se confundir com a divulgação dos filmes. Não vou entrar em certos méritos, sobre a importância, a qualidade e a pertinência dessa multiplicidade atual, sequer delimitar o que ou não é da natureza da crítica. Já fiz muito isso.  Mas quero acentuar essa mudança.  Hoje, com os posts em comunidades e nas redes sociais, as revistas e sites, talvez com uma ou outra exceção, se tornaram apenas um lugar de reunião de textos. O mais importante é a assinatura. Quem escreveu? Outra vez, posso estar exagerando. Cada um(a) tenta se virar como dá e aparecer ao máximo, porque só publicar em um lugar específico não é dá mais pé e, como o dinheiro passa com pouco volume por esse setor, é preciso vender as capacidades de avaliações e de validações críticas em todos os lugares disponíveis, muitas vezes sem receber nada para além do capital simbólico. Na crítica impressa, a coisa tá feia. Os jornais perderam leitores e a crítica virou comentário de passagem. Isso foi progressivo. Não temos mais publicações especializadas impressas com constância de publicação. A última foi a Paisá. Na Internet, os críticos mais antigos escrevem em seus blogs e os mais novos em novos sites, que, por serem muitos, melhores ou piores, dispersam-se na rede. O que parece estar havendo é uma maior presença de pessoas do ambiente acadêmico, com carreiras acadêmicas e presenças nas curadorias, em formações que não são específicas do cinema, que não passam pela voracidade fílmica da cinefilia,  voracidade de paixões,  de preconceitos, de preferências fetichista e de culto às autorias, procurando nelas uma marca sagrada de acesso a um templo perdido.  São outras aproximações,  outros olhares e outros objetivos que, nos últimos anos, passaram a conviver neste ambiente, embora, rigorosamente, essa convivência raramente exista, limitando-se à formação de grupos informais ou formalizados  com  integrantes de mesmos interesses e enfoques em comum.  Assim, se os veículos perderam importância,  a celebridade crítica ganhou mais projeção,  mais espaços, mais falas, mais diversidade,  mas não mais dinheiro. É um exercício pessoal de pequeno poder sobre discursos e avaliações,  eleições e princípios, com ideias às vezes interessantes, às vezes superficiais, às vezes com contornos excessivos. Nos casos mais distantes da cinefilia,  os filmes correm risco de serem pretextos para ideias anteriores aos filmes. Nos casos mais ortodoxos de cinefilia, os filmes correm risco de serem pretextos para se despejar neles paixões ou ódios anteriores aos filmes. Ou seja, a crítica, se tem um desafio, é salvar os filmes do que já se acha deles antes mesmo de vê-los.

Euller Felix: Você também tem um trabalho bem importante com a curadoria, algo que é uma parte importante de qualquer festival, mas que também está sendo cobrado e discutido quando falamos sobre as plataformas de streaming. Algumas delas dizem que possuem uma curadoria cuidadosa de filmes e tudo mais. Você pode falar um pouco sobre isso? Essa importância do papel da curadoria tanto em festivais quanto nessas plataformas de streaming?

Cleber Eduardo: Curadoria virou a palavra do momento. Está em tudo. Ou seja, qualquer seleção e organização de qualquer natureza, que tenha algum norte, filtro ou critério, é hoje tratado como curadoria, seja os livros de uma livraria, os móveis e objetos de design de uma loja, a playlist pessoal ou convidades de uma festa. Não vou questionar aqui esse uso, às vezes abusivo, mas sim pensar sua existência e necessidade. De fato, vivemos em um mundo inflacionado em termos de ofertas e carente de tempo. Todo mundo está apressado, sem tempo, cheio de compromissos. No caso do cinema, essa inflação de ofertas tem aumentado desde os anos 80: VHS, DVD, canais por assinatura, emule, torrent, streamings, festivais, filmes em cartaz. Impossível acompanhar tudo. E difícil de se arriscar às cegas, com tanta falta de tempo. A curadoria então entra como uma mediação, um filtro, um direcionamento. Cada evento ou streaming opera esse processo à sua maneira, com seus critérios e com seus direcionamentos. Alguns são mais diversos. Outros, mais segmentados. Cada profissional de curadoria tem sua noção do que é curadoria e de como deve atuar nela. Não é uma coisa só para todas as pessoas e todas as iniciativas. Nos festivais brasileiros, a curadoria foi necessária porque, no começo do século XXI, os festivais se multiplicaram, mas com programações parecidas. Encontrar certos focos e nichos foi uma forma destes festivais criarem identidades próprias – nem todos – e um campo de circunscrição (esse tipo de filme nos interesse, esse não, independentemente de avaliação de qualidade). Agora, além daquilo que é ofertado em festivais e streamings, existe a curadoria pessoal, individual, que é escolher o que ver mesmo em uma programação coerente e consistente, a partir do desejo do que se deseja ver. Por exemplo: estou indo para a Mostra de Tiradentes e, diante dos mais de 20 longas e dezenas de curtas programados para uma única semana, preciso filtrar o que me interessa, o que posso perder e ver depois, o que não me interessa pelo que sei a respeito, etc e tal. Há em Tiradentes uma curadoria forte e com identidade reconhecível, às vezes menos, às vezes mais, mas, mesmo assim, eu sempre terei de escolher com critério o que irei ver, porque não consigo ver tudo. Meu HD, por exemplo, tem curadoria. Não baixo tudo, não vejo qualquer coisa, preciso de um motivo, de uma razão. 

Euller Felix: Essa pergunta é meio que uma forma de tentar entender as referências dos colegas críticos. Teve algum texto ou livro sobre cinema que você considera fundamental para sua visão crítica e de cinema? 

Cleber Eduardo: Tive alguns textos e livros, em diferentes fases, que me influenciaram, mas também tive outros, que, mesmo não sendo influências diretas, foram muito inspiradores. Entre os de maior influência, o primeiro autor foi Jean Claude Bernardet com BRASIL EM TEMPO DE CINEMA (1967) e CINEASTAS E AS IMAGENS DO POVO (1985), ambos lidando com o mesmo questionamento: a visão de classe dos cineastas brasileiros como moduladora de diferentes formas das escolhas formais e narrativas dos filmes – da segunda metade dos anos 50 ao começo dos anos 80. São livros com uma frontalidade quase sem filtros inibidores em relação a filmes e cineastas considerados os mais importantes deste período.  Esse tom de questionamento frontal não a um filme, mas a um conjunto de filmes em determinado momento histórico e em um determinado país, marcou muito meus procedimentos na crítica. Sempre tive mais interesse como leitor de crítica e como crítico em textos mais panorâmicos do que em textos só sobre um filme (a não ser que, por meio de um filme, chegue-se a outros, mas o filme em si, neste sentido, é um trampolim para um panorama). Essa mesma ênfase na visão de conjunto me leva a considerar mais a introdução de Ismail Xavier em Alegorias do Subdesenvolvimento (1993), sobre o cinema da virada dos anos 60 para os 70, do que as análises dos filmes. Isso é certamente influência do primeiro impacto com os dois livros de Jean Claude, mas sobretudo o Brasil em Tempos de Cinema, no qual escreve que, apesar de se acharem revolucionários,os cinemanovistas são burgueses, com personagens que servem de mediação de classe e intelectual entre o povo e o filme. 

Em outro momento, a leitura de Da Abjeção (1962), de Jacques Rivette, foi uma solidificação. Os textos de Bernardet colocavam uma questão: os modos de encarar um tema, uma questão, um universo, uma situação ou personagens nos filmes. É uma busca, na forma, de uma visão política. Uma forma justa ou necessária. Rivette faz o mesmo, mas, em vez de lidar com o povo ou com a pobreza e suas formas de representação em um conjunto de filmes,lida com um único filme, com sua representação do campo de concentração, com a imagem da morte e do horror, repudiando que ela seja palatável. Essa noção de limites do cinema e uma justa representação foi muito importante na consolidação mais consciente de um olhar

Uma conversa entre Godard e Bresson, publicada no catálogo sobre a mostra de Bresson no Cinusp, e a conversa entre Daney e Rivette, filmada por Claire Denis, e a conversa de Fritz Lang e Godard, também disponível no youtube, estão entre reflexões inspiradoras.

Outro texto importante foi o de Jonathan Crary sobre o quadro No Balcão, de Manet, que vê na composição da obra uma resposta aos estímulos cognitivos na Paris do século XIX, sem reduzir a obra à sua interpretação.

Nicole Brenez em seus diferentes textos também teve importância em anos mais recentes, mas antes pelo conjunto das ideias.

Euller Felix: E para você, qual a função e o objetivo da crítica de cinema?

Cleber Eduardo: Já pensei mais a esse respeito. Acredito que em alguma medida a crítica deveria lidar com a pertinência específica e histórica das formas fílmicas. Fazer relações e perceber os diferentes momentos históricos, as particularidades nestes momentos. A crítica eleitora, que coloca hierarquias, é interessante e limitada, não contribui muito. A crítica puramente interpretativa também fica manca. É possível ver uma diferença em tudo entre Lars Von Trier, Apitchpong e Abbas Kiarostami nos primeiros anos do século, inclusive de expressividade, sem deixar de reconhecer a importância de cada um anos atrás. Também é possível ver que, entre os cineastas do escândalo, Von Trier é ainda mais firme que Gaspar Noé, mesmo eu não gostando de Von Trier. Também é possível ver um abismo de força e importância entre Bellochio e Moretti na Itália, sem partir da constatação de que Moretti é no máximo um inventivo autor médio enquanto Bellochio é um ator único e monumental, mas também sem igualá-los em altura. A crítica faz sim uma disputa de eleições, é verdade, mas ela precisa estar argumentada, não apenas fruto de eleição e listas. 

Eu acho importante na crítica fugir da muleta autorista. É preciso relacionar os filmes entre autorias diferentes, por dentro do tempo histórico ou entre diferentes tempos históricos, mas sem aprisioná-los a suas autorias. Esse é o maior desafio da crítica hoje. Olhar o que as formas fílmicas de um tempo expressam desse tempo e não apenas expressam da individualidade criadora.

Euller Felix

Cientista Social, pesquisador e crítico de cinema. Um dos Organizadores dos livros "O Melhor do Terror dos anos 80" e "O Melhor do Terror dos anos 90", ambos publicados pela editora Skript.

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