Elitismo, festivais, crítica e… Cinema?

Sergio Vaz, um poeta aqui da periferia de São Paulo tem uma poesia chamada “Novos dias”, lá ele fala “muito amor, mas raiva é fundamental” e este texto vai ter um pouco de amor e um pouco de raiva.

A semana foi agitada nas discussões sobre critica de cinema no Brasil, pretendo até fazer um texto sobre a questão da “generosidade na crítica”, mas não acho que este seja o momento. Quero falar sobre outro assunto que está entalado aqui faz um bom tempo: elitismo no(s) (discurso sobre) cinema. A motivação foi um post falando que deve ser ótimo morar em São Paulo, já que aqui acontecem diversos festivais de arte e, claro, festivais de cinema. Achei engraçado, confesso, por morar na Região Metropolitana de São Paulo a minha vida inteira e nunca ter tido acesso a nenhuma dessas “comodidades” mesmo morando aqui. O motivo? Sempre morei em periferia.

Tem gente que acredita que o fato de existir um festival na cidade ou de haver mais cinemas de rua com uma pluralidade maior de filmes que fogem dos blockbusters de shopping no centro da cidade é um indicativo de uma facilidade. Bom, acredito que essa seja uma opinião de quem não mora ou não conhece a Região Metropolitana de São Paulo. O centro da cidade de São Paulo é próximo mesmo, mas de quem mora ali nas redondezas. Ou dito de uma outra forma: é próximo de quem têm um poder aquisitivo que possibilita alguém morar no centro de São Paulo ou nos arredores.

O centro é longe para quem mora na Zona Sul de São Paulo. O centro é longe para quem mora nas periferias da Zona Leste. O centro da cidade de São Paulo é longe para quem mora nas periferias da Região Metropolitana da Estado. Pergunte para qualquer pessoa que more em São Bernardo do Campo ou em outras periferias do ABC paulista (eu morei boa parte da minha vida em Mauá) se é fácil chegar em um cinema de rua do centro da cidade, na Paulista, por exemplo.

Vou dar um exemplo prático e que aconteceu comigo em 2019. Eu trabalhava nas ruas de São Paulo, normalmente no centro. Lembro muito bem de estar trabalhando ali na Paulista e ficar olhando que Parasita e Bacurau estavam em cartaz. Adoraria assistir, mas as sessões eram ou a tarde, na hora em que eu estava no trabalho ou a noite, quando ficaria difícil para voltar para casa de transporte público. Ah, e aqui eu não tô nem contando o cansaço de ficar de pé durante todo o trajeto de ir ao trabalho, ficar em pé na rua e almoçar uma marmita fria em 15 minutos. Acho que seria um tanto quanto desafiador ficar acordado e ignorando o cansaço durante a sessão, mas tô falando de outros problemas.

Acho engraçado que quando compartilhei com alguns colegas esse sentimento, o discurso que ouvi foi quase uma defesa da meritocracia, de que deveria haver um “esforço maior da minha parte” para conseguir assistir aos filmes. É uma outra realidade. É muito fácil fazer discursos sobre “esforço” quando parece que a pessoa nunca se esforçou com nada. Quando mora do lado de uma estação de metrô que fica do lado de um cinema com os filmes que a gente tava discutindo. Ah, o aluguel dessa região é por volta de 2 mil reais, só para constar era o dobro do que eu recebia naquele trabalho.

Ao mesmo tempo, em conversas com colegas que moram em lugares mais distantes do centro, em periferias diferentes do Brasil, estes pareciam entender um pouco melhor o meu sentimento de frustração e raiva. É mais ou menos como diz Racionais e GOG, e eu vou citar toda a parte da música Brasília Periferia do GOG: “periferia é periferia em qualquer lugar, é só observar, baú sempre lotado, vida dura e cheia de sonhos”. Periferia é periferia aqui em São Paulo, em Brasília, em Minas, no Pernambuco, na Bahia, a gente se entende, vivemos as mesmas dificuldades na maioria dos casos.

Sempre reclamo da dificuldades de encontrar cinemas próximos para assistir algum filme fora do circuito. Da dificuldade de chegar nos cinemas da Paulista e do centro no geral para ver os filmes das Mostras e Festivais. Este texto é mais um desabafo para vocês, que não moram aqui e/ou tem alguns privilégios entenderem que nem sempre é fácil e que só o fato de morar em São Paulo não é garantia de ter acesso a cultura e a arte em geral.

Engraçado também as soluções que escuto até os dias de hoje quando falo das dificuldades de encontrar um filme. Volta de aplicativo se não tiver ônibus. Lembro que uma vez tive que sair mais cedo de uma sessão de um filme em um festival de cinema, eram 22 horas, e não achei uma única pessoa que topasse a viagem ali da Paulista para a periferia da cidade. Imagina se fosse esperar o filme acabar.

É meio desafiador continuar na crítica, faço muito por uma inquietação pessoal de discutir as coisas que assisto. Não dá para sair do trabalho para assistir um filme, crítica não paga as contas da maioria das pessoas que eu conheço. Continuo e vamos seguindo, mas as condições materiais e geográficas de quem mora nas periferias é desafiadora e, na maioria dos casos, desmotivadora.

Não tenho soluções efetivas e práticas para os problemas expostos aqui e sei que vai ter gente que vai torcer o nariz, vai vir com discurso semelhante ao da meritocracia e essas coisas. Para essas pessoas eu só digo: melhorem nos discursos e busquem enxergar a vida para além da linha amarela do metrô.

Euller Felix

Cientista Social, pesquisador e crítico de cinema. Um dos Organizadores dos livros "O Melhor do Terror dos anos 80" e "O Melhor do Terror dos anos 90", ambos publicados pela editora Skript.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

%d bloggers like this: