À Meia-Noite Levarei Sua Alma – (re)visão Mojica

Nessa revisão da filmografia de José Mojica Marins era claro que eu ia chegar aos filmes com a figura mitológica de Zé do Caixão, o agente funerário assassino que busca perpetuar o seu sangue. Acabei revendo o filme na nova remasterização e decidi já escrever sobre ele.

Falar sobre À Meia-Noite Levarei Sua Alma é, ao mesmo tempo, uma tarefa difícil e gratificante. Difícil pois muitas pessoas que eu considero competentes da pesquisa e da crítica já se debruçaram sobre o filme e fica aquele receio de não estar contribuindo em nada com a obra. Mas, é gratificante poder falar de uma obra tão boa, interessante, inventiva e original quanto o filme do Mojica.

Fico até um pouco mais tranquilo quando lembro que não é o intuito desta série de textos sobre a filmografia mojicana trazer uma visão nova sobre seus filmes. Mas sim registrar as minhas impressões de revisão de alguns de seus filmes e o impacto da minha visão inicial, no caso dos filmes que eu ainda não havia tido contato.

Isto posto vamos ao filme e ao personagem. Zé do Caixão é um agente funerário que não quer, de forma alguma, deixar de existir. Busca continuar sua existência através de sua linhagem sanguínea, ou seja, quer continuar sua existência através de um filho. Ele não consegue isso com a mulher com quem está, então decide pavimentar o seu objetivo em uma estrada de sangue. Mata quem estiver na sua frente e comete todas as atrocidades possíveis para atingir o que deseja. Primeiro ele mata a mulher com quem está, depois mata o seu amigo, que está em um relacionamento com uma mulher com quem deseja ter um filho. Depois, abusa da mulher que, por não conseguir sobreviver com aquilo que Zé do Caixão fez com ela, morre também.

Satisfazer os seus desejos é uma premissa básica do personagem, ele faz o que quer independente das convenções sociais, seja comer carne em um feriado religioso, andar na rua, tomar cachaça ou ganhar dinheiro. E quem fica no caminho entre ele e a satisfação dos seus desejos irá sofrer, e não é pouco.

Zé do Caixão é um ser realista em termos filosóficos. Não tem medo do sobrenatural pois não acredita nele. Inclusive, ele mesmo diz que é tão forte por não temer nada de outro mundo. O personagem de Mojica despreza tudo aquilo que lhe parece não material. O que ele quer é viver bem e concluir os seus objetivos terrenos.

Por querer apenas isto, ele mesmo se apresenta como um revoltado contra a realidade que está ali posto para ele. Zé do Caixão é um inconformado com a miserabilidade, precisa ser algo mais. Precisa ter algo mais. Por isso quer tanto prolongar a sua existência.

E para conquistar seus objetivos não perdoa ninguém. Quem está no seu caminho, ou quem tenta impedi-lo encontrará a morte. As cenas de luta e de morte neste filme são de tamanha inventividade que continua, hoje mesmo em 2024, convencendo bem mais do que filmes que gastam milhões de dólares em efeitos especiais. É aquilo, bons filmes sobrevivem ao tempo. Grandes filmes viram clássicos. E filmes incríveis como À Meia-Noite Levarei Sua Alma se transformam em monumento cinematográfico do seu país.

À Meia-Noite Levarei Sua Alma e o próprio Mojica conseguem ser, ao mesmo tempo, um filme muito representativo de sua época e um filme muito a frente de seu tempo. Mais uma vez: sorte a nossa de ter um cineasta tão grande quanto Mojica na história do nosso cinema.

Essa série de textos sobre a obra de Mojica começou com Finis Hominis e vai continuar, sem prazo ou pressa.

Euller Felix

Cientista Social, pesquisador e crítico de cinema. Um dos Organizadores dos livros "O Melhor do Terror dos anos 80" e "O Melhor do Terror dos anos 90", ambos publicados pela editora Skript.

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