Dialética Crítica: Marcelo Müller

Depois de uma pequena pausa volto com as entrevistas com os mais diferentes críticos que atuam discutindo esta arte incrível que é o cinema. Hoje converso com o amigo Marcelo Müller, crítico e editor do Papo de Cinema.

Marcelo além de escrever com uma frequência incrível sobre os lançamentos do cinema – seja do circuito comercial, de festival e de streaming – atua também como professor de diferentes cursos na área do cinema. Sempre está com turmas abertas para o seu curso de Crítica e um muito completo sobre o cinema brasileiro.

Fiz algumas perguntas para ele pensar um pouco está nossa prática.

ENTREVISTA

Euller Felix: Você é o editor do Papo de Cinema que é um dos sites tradicionais de crítica aqui do Brasil, pode contar um pouco sobre a história do site e a sua?

Marcelo Müller: Comecei a escrever sobre cinema despretensiosamente num fotolog pessoal. Eram pequenas sentenças sobre os filmes, nada mais do que isso. Depois, junto com meu irmão, Rafael, e um amigo, o Conrado, abri um blog sobre cinema, no qual a pretensão era escrever gradativamente coisas mais substanciais. Em paralelo, comecei a estudar obsessivamente a história e a linguagem cinematográficas, devorando literatura e filmografias completas dos realizadores que me chamavam a atenção, buscando me integrar mais nesse mundo. Aí comecei a pensar nisso como uma profissão e veio o ingresso no curso de comunicação (sou formado em jornalismo). Fiz duas coberturas do Festival de Gramado para uma revista digital local da cidade de Gramado. Aí em 2011 veio o convite do Robledo Milani, editor-chefe e proprietário do Papo de Cinema, para integrar a equipe de colaboradores do site. Comecei escrevendo um texto por semana, meu envolvimento com as dinâmicas do site cresceu e mais tarde fui promovido a editor, posição que ocupo há alguns anos. E posso dizer que me sinto um privilegiado. No Papo de Cinema encontrei um espaço que me dá total liberdade para trabalhar, no qual o diálogo é preservado como essência do cotidiano criativo/jornalístico, e que ainda me proporciona sobreviver financeiramente do meu trabalho, o que infelizmente é uma exceção num mercado regido pela precarização do jornalismo cultural e, mais especificamente, da crítica de cinema.

Euller Felix: Você ministra diversos cursos sobre cinema, um deles – e que é sempre muito bem elogiado – é o sobre a história do cinema brasileiro. Pensando nisso, como você observa a produção cinematográfica do Brasil hoje? 

Marcelo Müller: Primeiramente, é muito legal ter o retorno positivo a respeito desse curso sobre cinema brasileiro. Há uma carência enorme de formação e conhecimento acerca da nossa própria história. O cinema brasileiro feito antes dos anos 1960 é praticamente desconhecido, até mesmo para estudantes de cinema e membros da comunidade cinéfila. Sabemos muito de Nouvelle Vague francesa, do Expressionismo Alemão, de tópicos internacionais super importantes, sem dúvida, mas desconhecemos a chanchada, o cinema brasileiro das primeiras décadas, etc. Então, para mim é uma felicidade enorme ajudar de alguma maneira a tornar visível essa história tão rica. No que diz respeito ao aspecto criativo, a nossa produção cinematográfica está muito bem, obrigado, Não tenho dúvida de que possuímos um dos principais cinemas do mundo, que contempla uma impressionante variedade cultural e de abordagens. Nossa nação-continente contém muitos Brasis, por isso é tão importante descentralizar a produção do eixo Rio-São Paulo. Mas, ainda engatinhamos quando o assunto é tornar esses filmes mais acessíveis e visíveis. As pessoas se assustam quando falamos que o Brasil lança em média 180 longas por ano. Em que lugar esses filmes estão sendo exibidos? Às vezes sequer o público fica sabendo da existência de alguns deles, até porque a briga com os milhões dos mercados hegemônicos torna essa disparidade ainda mais dramática. Então, é preciso conhecer o nosso passado, valorizar o nosso presente e pensar o que desejamos no futuro. A despeito dessa luta desigual em relação ao produto hollywoodiano, por exemplo, será que não precisamos pensar melhor em questões como desenho de audiência, estratégias para atingir públicos específicos e a previsão de verba para divulgação, por menor que ela seja?

Euller Felix: Em relação a crítica de cinema que é feita aqui no Brasil, como você vê o cenário? 

Marcelo Müller: Parafraseando Ariano Suassuna, acho que sou um realista esperançoso, ainda que o pessimismo prevaleça em alguns momentos. Tem muita gente interessada em ingressar nessa área. E esse interesse ajuda ela a continuar viva. Mas, temos de encontrar formas de sobrevivência. Claro que me preocupo com o esvaziamento do discurso crítico, com o baixo percentual de leitura das novas gerações, com o crescimento de uma percepção dual de mundo, que indubitavelmente enfraquece a crítica por supor a existência apenas do “ame” ou “odeie”. Claro que me preocupo com aspectos da formação. Há muitos postulantes a críticos de cinema que sequer estudam linguagem e história, dois campos fundamentais para reivindicar essa posição de crítico diante de alguma forma de expressão. Sem estudar história e linguagem não dá. Todavia, tenho uma preocupação específica com o mercado do jornalismo cultural e, incluído nele, o da crítica de cinema. Precisamos combater essa noção introjetada no senso comum da crítica apenas como um hobbie, como algo feito no tempo livre por apaixonados. É preciso ter atitude profissional para que a cadeia nos enxergue como tal. É preciso que profissionais sejam remunerados pelos textos que escrevem, pelas aulas ministradas, mediações de debates e curadorias. Não podemos compactuar com a precarização econômica dessas atividades, pois, assim como tantas outras, elas precisam garantir a subsistência de seus profissionais. E vejo pouca gente discutindo essas questões de ordem prática, até porque as recompensas do engajamento e até de remuneração financeira têm ido ultimamente menos para críticos/críticas, e mais para influenciadores que funcionam como braços informais das campanhas de marketing dos filmes – geralmente os grandes, exatamente os que têm poderio econômico. Então, a meu ver, é preciso discutir a crise de valores da crítica, mas também de que forma ela sobrevive íntegra e ética num mercado tão inclinado à propaganda.

Euller Felix: Quais textos ou livros sobre cinema que você considera que foram essenciais para a sua formação e visão sobre o cinema? 

Marcelo Müller: Ah, são muitos. Aliás, como é importante a leitura para quem deseja ser crítico de cinema. Me considero uma soma de tudo o que li e vi. Como sou apaixonado pela história do cinema, alguns livros figuram entre os meus queridinhos. São alguns deles: Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro, do Jean-Claude Bernardet; Hitchcock/Truffaut:Entrevista, de François Truffaut; A Cidade das Redes: Hollywood dos Anos 40, de Otto Friedrich; O Que é Cinema?, de André Bazin; A Linguagem Cinematográfica, de Marcel Martin; Críticas de Inácio Araújo: Cinema de Boca em Boca; Charles Chaplin, de André Bazin; Nova História do Cinema Brasileiro, Volumes 01 e 02, de Fernão Pessoa Ramos e Scheila Schvarzman; além de biografias de grandes personagens do cinema. Esses são alguns dos que me vêm à cabeça de pronto, mas há vários outros que gostaria de reler, uns que foram importantes por trazer inquietações e colocar minha perspectiva em crise, outros por me apresentar prismas que nunca havia imaginado. Sempre tem um livro de cinema na minha cabeceira. 

Euller Felix: Para você, qual é a função da crítica de cinema?

Marcelo Müller: Acredito na crítica como modo de expandir o diálogo com (e entre) os filmes. Não creio na crítica utilizada como baliza para decidir o que ver, até mesmo porque, apesar de uma apropriação natural da crítica pela indústria cultural, não é nossa função orientar o consumo. Acredito nessa crítica que lemos depois de ter assistido aos filmes a fim de colocar nosso olhar e nossa percepção em crise. Se lemos a crítica antes, somos induzidos, não tem jeito, até porque a crítica de cinema é naturalmente indutiva. Então, para mim, a crítica é um diálogo capaz de expandir horizontes, claro, a depender da generosidade do crítico e do leitor, pois essa conversa precisa acontecer numa via de mão dupla caracterizada por transparência e ética. Crítica não é doutrinação, é partilha generosa. E para ser crítico é preciso muito mais do que uma vontade de falar às massas, como diria Machado de Assis. É preciso compromisso, dedicação, estudo constante, compreender a própria ignorância e trabalhar arduamente para diminuí-la. A crítica de cinema precisa, mais do que nunca, em meio a essa crise ocasionada por um inchaço no mercado e a frequente confusão entre análise e marketing (in)voluntário, de ser mais substancial e também encontrar o público que deseja consumi-la como tal. Pensando na atualidade, a crítica é um tipo de sacerdócio exercida num tempo de descrentes e falsos profetas. 

Euller Felix

Cientista Social, pesquisador e crítico de cinema. Um dos Organizadores dos livros "O Melhor do Terror dos anos 80" e "O Melhor do Terror dos anos 90", ambos publicados pela editora Skript.

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