Dialética Crítica: Bernardo Oliveira

Continuando o trabalho de discussão sobre crítica de cinema com críticos de cinema que eu admiro e foram e são referência para mim, hoje converso com Bernardo Oliveira, que foi crítico da contracampo e também colaborou com a Cinética, além de publicar textos em outros lugares, como o blog Matéria.

Bernado também escreveu um ótimo artigo sobre critica no site Indeterminações e eu recomendo muito a leitura. Além disso tem um trabalho com música e fez o filme “Caixa Preta” , com a Saskia. Você pode encontrar todos os trabalhos de Bernado Oliveira neste link aqui.

ENTREVISTA

Euller Felix: Lembro de ter lido que você não se vê mais como um crítico de cinema, mas, o que te faz pensar assim e não exercer a crítica? É mais relacionado com o cinema, com a crítica ou com você mesmo? 

Bernardo Oliveira: Eu entendo a crítica como um trabalho específico, que está dentro do guarda-chuva do jornalismo, do cronismo, da produção diária e eu esboçava um movimento nesse sentido na contracampo: ver o filme para escrever. Hoje eu vejo o filme porque eu amo ver filmes, é um gosto, um desejo recorrente. Eu adoro ver filmes, mas hoje não me sinto tão obrigado a escrever. Quando escrevo alguma coisa, escrevo ali nas redes sociais. Não percebo exatamente como uma crítica, é mais um registro impressionista, de alguém que está impressionado, que esta estimulado a partilhar alguma coisa. Inclusive foi por isso que eu comecei a escrever crítica, porque saía do cinema cheio de vontades de continuidade, de desdobramento… 

A crítica que eu gostava de ler era uma crítica mais simples e detida em relação ao filme, percebo que essa crítica está acabando. Essa crítica que se faz nos blogues, nesses vídeos de tik tok, não vejo falando da construção do filme, é sempre algo muito superficial e distanciado da composição, da montagem… Eu admirava uma crítica tipo a do Inácio Araújo, um olhar agudo na construção do filme… esse tipo de crítica é uma coisa muito rara hoje em dia. Tem a crítica do Tik tok, mas tem também os grandes tratados repletos de citações bibliográficas, terminologias complexas, acho que está acontecendo a ampliação do espectro acadêmico na produção de crítica cinematográfica. Tem uma bibliografia cada vez mais densa. Essa capacidade de transmitir um pensamento rápido, certeiro e preciso sobre um filme meio que se perdeu. Ou pelo menos está se perdendo. Não digo que tenha que ser um impressionismo generalizado, pode ser até algo que parta de algum pressuposto conceitual, alguma ideia estética, alguma obra além do filme. Mas eu eu sinto que a ideia de crítica hoje está assolada por uma tendência mais ligada às “formas universitárias”… 

Hoje acho que eu poderia voltar a escrever, mas é porque a crítica é um trabalho — embora eu raramente tenha ganhado dinheiro com ela. A gente trabalha com outras coisas. Acabei fazendo um filme também, com a Saskia, o “Caixa Preta”, de 2022. Eu li críticas boas sobre o filme, no Instagram inclusive. Críticas que se detiveram no filme, alguns até articulando com outros times, com outras perspectivas, mas as que gostei mais foram as que falaram muito da matéria do filme. Eu acho que a crítica de cinema para jornal, como ela foi, até a eclosão do Cahiers du Cinema, a crítica era uma nota, uma observação coroada por uma uma avaliação sangrenta. Havia algo de performático na crítica rápida do jornal, um boutade, uma grossura… Sobretudo se você pensa na imprensa americana. Pega os textos de Pauline Kael por exemplo, tem uma uma petulância assim um pouco uma agressividade. Já na Cahiers, tinha ali um texto que oscilava entre tratado estético e ou impressionismo imediato dos críticos. O pessoal da Cahiers já com uma pretensão de ampliação do escopo, do que que seria o trabalho crítico. Muitas vezes realmente eram pessoas muito eruditas e cultas. Mas isso não comprometia o vigor daquilo que estava ali sendo produzido. 

Euller Felix: Pensando no que vem sendo produzido hoje na crítica brasileira, o que você tem achado?

Bernardo Oliveira: Eu acho que tem muita coisa. Muita coisa que eu acho muito ruim também. Porque, veja, eu estive muito ali naquela era dos blogs, entre 2002 e 2010, escrevi e li muito blog nessa época. E a impressão que se tinha em relação a chegada da internet mais ágil, a questão dos downloads, de você ter esses repositórios e drives, isso tudo vai sendo construído por ali, a impressão que dava é que essa força de produção teórica, de produção crítica, não estava ancorada ali nos grandes meios de comunicação, a impressão que dava é que aquilo ali seria uma espécie de alternativa em relação aos filmes hegemônicos, as opiniões consensuais, à imposição ideológica das indústrias e do jornalismo banal. A impressão que dava é que ocorreria uma molecularização, vamos dizer assim, da produção crítica, e de fato houve. Acho que a Contracampo e depois a Cinética, são dois exemplos de uma autonomia. Embora a Contracampo tenha ganhado verba do Ministério da Cultura e tal — e tinha mais que ganhar mesmo, que bom que ganhou —, mas assim, a essência da Contracampo foi que ela se manteve sendo muito independente nesse sentido.

Então a impressão que dava é que a gente com internet, com os blogs, ganharia uma autonomia em relação aos grandes centros de produção, massacrantes, de Hollywood, etc. E aí o que a gente vê hoje é uma proliferação de perfis em todas as plataformas que fazem uma espécie de linha acessória dos grandes estúdios norte-americanos. Quer dizer, o poste mijou no cachorro. Então, pra mim que comecei escrever na Contracampo em 1997/98, ou até antes, e justamente escrevia porque não gostava do que lia na imprensa oficial, não gostávamos do que líamos no Globo, no Jornal do Brasil, na Folha de São Paulo. Com exceção, algumas pouquíssimas exceções como o do Inácio, que é uma grande referência. Isso era uma coisa compartilhada por todo mundo que fundou a revista na época, era uma insatisfação. Não era trabalhar para o Steven Soderberg, para o Ridley Scott, como eu hoje vejo a galera fazendo e vejo muita gente inclusive falando coisas sobre os cinemas de uma forma completamente vazia. Com exceção, claro, de algumas ações aí como Indeterminações, Descompasso, gosto dos textos do João Pedro Faro, da Ana Júlia Silvino, Juliano Gomes… 

Euller Felix: Você tem um trabalho com o cenário musical também, né? Você tende a relacionar com o cinema? 

Bernardo Oliveira: Cinema e música sempre estiveram na minha vida, quando eu era criança, quando eu era adolescente e depois. Eu sempre me envolvi com música em todos os sentidos, tocando, produzindo, gravando. Nos últimos dez anos eu tenho atuado mais como produtor no QTV Selo fazendo eventos, discos… QTV é uma produtora, um coletivo, eu faço parte desse coletivo. E o cinema é curioso porque houve uma época em que o cinema pra mim se tornou uma espécie de fuga, assistir filmes virou uma espécie de desafogo mental. Tipo assim, é um momento de ver filme e futebol.

Eu saí da Contracampo, fui fazer cinema, fui trabalhar com cinema mesmo. Com edição, com filmagem, trabalhei no CTE da UERJ, Centro de Tecnologia e Educação, ministrei oficinas na na antiga CUFA, Central Única das Favelas, ministrei oficinas no CEASM, no SESC Madureira, e quando eu falo ministrei oficinas na verdade fiz parte de também de coletivos de produção dentro desses contextos onde eu era uma espécie de instrutor mas o trabalho que foi realizado foi realizado coletivamente. Com uma galera, por exemplo como Janaína Refém, Michel Messer, Delano Valentim, é uma turma que tá aí até hoje produzindo. E eu volto a escrever sobre cinema por no contexto dos blogs no meu blog pessoal, o Matéria, mas assim totalmente descompromissado.

Agora, o que eu não tinha previsto foi ter feito um filme, não estava previsto. Tinha até uma ideia, circulava e com a minha amiga Saskia — que é grande artista, grande produtora — a gente fez um filme, um filme que circulou pelo menos em festivais nacionais e o que foi, o que tem sido uma experiência muito forte assim pra mim e pra Sal também.

Euller Felix: Quais livros ou textos críticos ou sobre cinema foram importantes na sua trajetória e te influenciou no seu pensamento sobre cinema?

Bernardo Oliveira: Os livros de formação mesmo, foram livros geralmente escritos por cineastas, sobretudo Notas do cinematógrafo, do Bresson, Cinema de invenção, do Jairo Ferreira, Roberto Rossellini em Fragmentos de uma Autobiografia, Esculpir o tempo, do Tarkovski, a autobiografia do Kurosawa, os livros do Eisenstein, geralmente livros escritos por cineastas e críticos/cineasta tipo Jairo… Hitchcock/Truffaut, claro! Chaves do Cinema, do Amengual, John Ford, do Jean Mitry, Orson Welles, do Bazin e O que é o cinema? também… Li muito o Alguns, livro do Bressane, assim como aquela conversa entre o “enfant terrible” e o “enfant gâté” que foi publicada na Folha. Li muito Paulo Emílio Sales Gomes, me impactou muito… Eu li muito aquele livro coletânea que o Ismail Xavier fez, A experiência do cinema. Enfim, aquilo que tinha à mão nos anos 80, 90… Recentemente, tenho ficado muito impressionado com Ver e Poder, do Commoli, um livro que deixei passar na época… Mas o que de fato renovou meu amor pelo cinema mais recentemente foi ter assistido ao curso Ebó Ejé, ministrado pelo Ewerton Belico, sobre as relações entre o cinema brasileiro e as religiões de matriz africana.  

Euller Felix: Qual é a função da crítica e do crítico de cinema, sobretudo hoje e aqui no Brasil?

Bernardo Oliveira: A crítica não é sobre o cinema em geral, não é sobre as questões que circulam o filme, é sobre aquele filmezinho ali. É um trabalho muito difícil de se fazer e acho que no Brasil já tivemos excelentes críticos — alguns sumiram, alguns pararam de escrever, outros migraram pro Letterboxd ou para o Instagram. E eu acho que seria muito bom que a crítica hoje pudesse escrever de forma simples sobre questões de alcance, sobre filmes que propões visões singulares. Eu acho que o cinema brasileiro hoje é muito interessante, embora a gente esteja reparando um processo de destruição tão planejada quanto bombástica, de depredação, vamos dizer assim de um ecossistema cinematográfico mais plural, múltiplo e mais amplo, de um ecossistema, de uma gramática. Os filmes estão ficando muito parecidos por causa das plataformas, filme da Netflix, você tem filme do mundo todo, porém todos são iguais. Então, o papel do crítico hoje talvez seja, de uma forma simples, objetiva e aguda, apontar onde os filmes fazem coisas que você não vê em outros filmes, onde um filme pode ser especial. Por exemplo, uma crítica hoje tem um desafio de encarar essa nova safra de filmes brasileiros, dos mais interessantes como Mato Seco em Chamas, como O dia que te conheci, como Estranho caminho. Ainda não olhamos para filmes realmente alienígenas como Vermelha, Ilha, Cavalo, Batguano, Sol Alegria… Temos aí uma safra de filmes espetaculares, que aguardam uma escrita crítica, um método para além da suspeita. A crítica é um método, requer um método, um procedimento que acende, que intensifica os filmes.

Euller Felix

Cientista Social, pesquisador e crítico de cinema. Um dos Organizadores dos livros "O Melhor do Terror dos anos 80" e "O Melhor do Terror dos anos 90", ambos publicados pela editora Skript.

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