Dialética Crítica: Sérgio Alpendre

Sempre digo com muita sinceridade que esse espaço de entrevistas que eu faço com colegas da crítica é um espaço de aprendizado continuo. É uma oportunidade de aprender lendo e relendo essas entrevistas que, para mim, são únicas.

O entrevistado de hoje é um colega que ao ler os seus textos fui formando o crítico que sou. Suas reflexões e posições perante aos filmes me ajudaram a compreender a forma e o conteúdo deles. Converso hoje com o crítico Sergio Alpendre.

Sergio já colaborou com a contracampo, tem um site próprio em que escreve críticas e divulga os seus ótimos cursos de cinema. Escreve para o Leitura Fílmica e com frequência para o jornal Folha de São Paulo.

E ele acabou de ser um dos organizares de um livro sobre o crítico Inácio Araújo.

ENTREVISTA

Euller Felix: Você é uma das pessoas da crítica que estão há algum tempo no ofício, hoje escreve em diversos lugares, seja em sites especializados ou mesmo para jornais. Nesse sentido, como você observa o cenário da crítica de cinema feita nos dias de hoje?

Sergio Alpendre: Hoje todo mundo pode ser crítico, basta abrir um blog ou fazer postagens no facebook falando o que pensa dos filmes. Nesse cenário, tornou-se cada vez mais difícil separar o crítico ou crítica que se preparou para desempenhar sua função do crítico(a) que caiu de paraquedas, eventualmente sem ter um real interesse no cinema. Quando se parte do princípio de que todo mundo pode ser crítico, muitas coisas se perdem no caminho. Não que o princípio seja errado. De fato, todo mundo pode ser crítico. Porém, desde que se preparem, estudem, vejam muitos filmes e conheçam bem a história do cinema e a crítica de arte (não só de cinema). Tem uma diferença entre escrever para um site ou para um jornal. Entre a Folha de S.Paulo, para onde escrevo desde 2008, e o Leitura Fílmica (desde 2021) a diferença é mais de tamanho. Posso fazer um texto enorme para o Leitura Fílmica, ou mesmo um texto mais breve e para a Folha se torna mais difícil, porque eles normalmente contam com o espaço do impresso. No entanto, preciso ter sempre em mente que são textos para serem lidos por um público amplo.

Euller Felix: Complementando a pergunta anterior, em alguns dos seus textos do site À Pala de Walsh você se debruça sobre o fazer crítica de cinema, e em um dos casos você falou sobre os “inimigos da crítica” e apontou que mesmo que tenhamos alguns avanços, sobretudo na presença de pessoas que antes não tinham a sua voz escutada e escoada, a crítica de cinema ainda enfrenta alguns dos mesmos problemas de 70 anos atrás. Você poderia discorrer um pouco mais sobre isso? Quais problemas? Vê indícios de superação? 

Sérgio Alpendre: O principal problema que vejo é a importância excessiva ao tema do filme. O tema certo, o tema justo, já automaticamente atrairia elogios e adesões por parte da crítica. Adesões desse tipo são totalmente nocivas, a meu ver, porque tornam a crítica obsoleta antes de qualquer coisa. Obsoleta, mas que ainda serviria para legitimar um ou outro discurso. Jamais servirá para se pensar cinema, para se entender de que maneira tal tema foi representado num filme, se a forma de narrar era boa, ou ao menos adequada. Não se trata de separar forma de conteúdo, pois normalmente quem faz isso ignora a forma para só falar do conteúdo, e sabemos que forma é conteúdo, no sentido de que o conteúdo determina a forma. Susan Sontag já apontava o problema em 1964, e ele se mantém. Como é mais difícil pensar na forma do filme, a maior parte dos críticos sai pela tangente falando de conteúdo, ou da forma mais superficial: “a fotografia é bonita”, por exemplo, ou a montagem é dinâmica. Esses, geralmente, acusam quem se preocupa com a forma, mesmo que minimamente, de formalistas. Recentemente um crítico foi mandado para o inferno só por escrever, no twitter, que forma é tão importante quanto o tema. E, no entanto, sem forma não há cinema.

Euller Felix: Me lembro de uma série de perguntas que você respondeu sobre a crítica de cinema, se eu não me engano na contracampo, e tinha uma pergunta sobre como você lidava com uma crítica de filme brasileiro e se havia diferença em relação a filmes internacionais. Hoje em dia, como você se coloca em relação a isso? Você tem um olhar diferente para as produções?

Sérgio Alpendre: Imagino que o olhar deva ser o mesmo para todas as produções de todos os lugares do mundo. Se conseguimos ou não, é outra história, pois podemos nos envolver mais com o que está mais perto de nós. Mas o objetivo deve ser esse e não pode haver condescendência de forma alguma. As passadas de pano e os tapinhas nas costas precisam ser extintos da crítica. Se não escrevermos de acordo com o que sentimos, por algum cálculo político, perdemos nossa alma e deixamos de ser críticos. Viramos publicitários. Lembro que eu e Inácio Araujo respondemos a essa questão do questionário da mesma maneira: “espero que sim” (que julguemos os filmes brasileiros com o mesmo olhar e o mesmo critério). Mas a meu ver é sinal de respeito. Se um amigo meu faz um filme, é meu dever procurar total isenção e poder dizer que o filme é uma porcaria, caso o seja, ou de aceitar que o filme é maravilhoso independente do fato de ter sido dirigido por amigos ou até por algum desafeto. Do mesmo modo, quero ver filmes bons, sejam do Brasil, sejam de outros países. Esse negócio de torcida é para competições esportivas. Em arte acho meio boboca.

Euller Felix: Sempre acompanho suas redes e vejo sua empolgação preparando os cursos que você oferece, postando leituras e revisões. Nesse caminho, teve algum livro ou texto que tenha influenciado muito o seu modo de ver cinema e de exercer a crítica?

Sérgio Alpendre: Praticamente todos, ou quase todos, e nenhum em especial. Ou melhor, o número de livros que me influenciaram no preparo das aulas é tão grande que não dá nem para destacar. Principalmente as aulas de crítica, para as quais sempre releio, como se fossem novos, pois sempre me ensinam algo, os escritos de Oscar Wilde, Clement Greenberg, Anne Cauquelin, Northrop Frye, Susan Sontag, e tantos outros autores e autoras que mexem comigo de alguma forma. Mas minha bíblia é Hollywood from Vietnam to Reagan… and Beyond, do Robin Wood. Meu objetivo é escrever algo com 10% da qualidade do texto de Wood nesse e em outros livros.

Euller Felix: E qual é a função da crítica de cinema para você?

Sérgio Alpendre: Pergunta sempre complicada para uma arte tão livre e incompreendida como a crítica. Creio nem haver mais espaço e tempo para a crítica propriamente dita, aquela que foi considerada um gênero literário para Cauquelin, uma arte, por Wilde e wildeanos como Jean Douchet. Quando há espaço, não há tempo, e vice-versa, mas penso ser ilusão sobretudo achar que se tem tempo. Talvez para quem viva isolado de tudo, sem internet, mandando seus manuscritos para alguém transcrever e publicar, isso seja possível. Crítica envolve tempo, e nossa sociedade não nos dá mais tempo. Para mim, a função da crítica é de diálogo. Entre quem escreve a crítica e o filme, em primeiro lugar. Depois entre quem escreve e os leitores. Hoje temos maus leitores, em grande parte. Percebemos isso pelas interações nas redes sociais e nos comentários de sites e jornais. Com maus leitores, fica mais difícil temos bons críticos. Talvez seja o caminho inverso também: temos maus leitores porque temos maus críticos. É possível. Mas tenho observado que bons críticos não existem mais, no sentido de que não há um crítico sequer, ou crítica, que só faça bons textos. Isto tem a ver com a falta de tempo e com a baixa respeitabilidade sofrida pela crítica nos últimos anos (mais uma vez, quando a forma não importa, não há necessidade de críticos), que faz com que todos tenham de se desdobrar em inúmeros trabalhos, alguns com pouca ligação com a crítica. O que temos são críticos e críticas em bons e maus momentos.

Euller Felix

Cientista Social, pesquisador e crítico de cinema. Um dos Organizadores dos livros "O Melhor do Terror dos anos 80" e "O Melhor do Terror dos anos 90", ambos publicados pela editora Skript.

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