Dialética Crítica: Bruno Carmelo

Continuando a minha série de entrevistas com críticos de cinema, hoje eu converso com uma pessoa que eu sempre gostei de acompanhar, o Bruno Carmelo. Sempre li seus textos no Papo de Cinema e agora acompanho assiduamente seu trabalho no Meio Amargo.

Na entrevista conversei com ele tanto sobre sua carreira como crítico, sua experiência estudando na Sorbonne, como também sobre alguns de seus pensamentos acerca da função da crítica.

ENTREVISTA

Euller Felix: Você é crítico desde 2004, certo? E fez o mestrado na Universidade Sorbonne Nouvelle, pode contar um pouco como foi essa experiência e o que você pesquisou?

Bruno Carmelo: O primeiro texto publicado ocorreu em 2004, dentro do programa Crítica Curta, do Kinoforum e do Festival Internacional de Curtas. Esse projeto foi fundamental à minha formação. Quanto ao mestrado, fiz estudos em teoria do cinema e do audiovisual. Minha surpresa foi descobrir o quanto é fácil e democrático ingressar na Sorbonne Nouvelle. O status da instituição leva a crer que seria dificílimo entrar, mas pelo contrário, há uma cota para estrangeiros, e a Paris III inclusive permite que os estudantes de outros países tenham aulas gratuitas de francês, como língua estrangeira, para ajudar na escrita da dissertação. O mais difícil, no caso, é se formar: devido à facilidade na admissão, eles são rígidos e exigentes com notas. Muitos colegas desistem, ou são reprovados no percurso.

Eu participei do último ano de uma estrutura antiga da pós-graduação, quando era preciso escolher um tema central, que geraria duas dissertações separadas e anuais. No primeiro ano, estudei o Manifesto de 1999, quando cerca de 80 diretores franceses, liderados por Patrice Leconte e Bertrand Tavernier, escreveram um texto solicitando clemência e condescendência da crítica francesa em relação ao cinema nacional. Em outras palavras, exigiam que nenhuma crítica negativa fosse publicada antes da estreia de um filme francês, o que gerou debates importantes sobre a função da crítica.

No segundo ano, estudei a política dos autores aplicada à revista Cahiers du Cinéma. Analisei os textos teóricos publicados pelos redatores, e segui oito autores frequentes na revista: três adorados pela publicação, três detestados por ela, e duas raras exceções em que o julgamento de valor se transformou ao longo do tempo. Esta segunda dissertação consistiu numa análise comparada dos textos publicados sobre todas os filmes destes autores, do primeiro filme aos mais recente, percebendo ferramentas de retórica e análise do discurso que se repetiam ao longo das décadas.

Euller Felix: Você produz críticas em texto e em vídeo, como você prepara e vê essas duas formas de refletir sobre o cinema?

Bruno Carmelo: Sempre tive bastante preconceito em relação ao vídeo e à possibilidade de crítica de cinema nas redes sociais. Formei minha cinefilia lendo textos, e acreditando na crítica enquanto gênero literário, além de possível obra de arte autônoma, para além de sua conexão com o filme analisado. No entanto, o vídeo surge como um desafio contemporâneo: seria possível criar debates com reflexões pertinentes, no ambiente veloz das redes, que tende à superficialidade, ao exagero, ao caça-cliques? Existem vídeos acadêmicos excelentes no YouTube, porém de alcance limitado, devido ao formato mais escolar. Em chave oposta, existem influenciadores, produtores de conteúdo e profissionais do cinema especializados em dar dicas – o que são propostas válidas, mas distantes do meu centro de interesse.

Há espaço para algo intermediário, que traga um debate válido dentro de um formato acessível, despojado, sem ser frenético, nem disperso demais? Ainda não tenho resposta clara para isso, e tenho muito a aprender a respeito da dinâmica do vídeo. Estou me testando, até como forma de desafio autoimposto. Passei mais de 10 anos escrevendo freneticamente para redações exigentes, em termos do volume de textos solicitados. Ainda tenho mais prazer escrevendo do que gravando vídeos, mas reconheço as vantagens do formato de imagem para dialogar com outra imagem – posso citar trechos do filme, ou estilos específicos de linguagem, e imediatamente usar trechos da obra em questão para exemplificar o que digo. Fico pensando que, hoje, algumas discussões se prestam ao vídeo melhor do que outras. Em alguns casos, quero me aprofundar, escrever artigos detalhados, apoiados por dados e pesquisa. Aí, só consigo desenvolver o raciocínio num artigo escrito mesmo.

Mas isso decorre muito mais de minhas capacidades do que das limitações dos formatos. Acredito na possibilidade de criar textos leves, acessíveis; assim como de elaborar vídeos profundos sobre filmes. Sigo me testando nessa área, e descobrindo novas possibilidades. Esse tipo de incentivo me permite pensar que não estou estagnado na mesma forma de comunicação.

Euller Felix: Lembro de ter visto algumas vezes você comentando sobre interações com os cineastas, de quando eles vêm até você questionando uma crítica sua, um argumento seu, como você vê a relação crítico e autor de cinema?

Bruno Carmelo: Esta é uma relação complicada, porque a priori, nenhum cineasta faz filmes para os críticos, e sim para os espectadores. Da mesma maneira, nenhum crítico deveria escrever para agradar ou provocar cineastas, e sim para os leitores. São forças aplicadas a corpos diferentes. Por isso, este diálogo possui o caráter de intrusão, de inconveniência. Acho interessante que meus textos sejam lidos por cineastas, e confesso que fico receoso quando publico textos negativos a respeito de uma obra, especialmente, no caso do cinema brasileiro. Sei de colegas que preferem se abster de escrever a respeito de filmes ruins, justamente para manter um bom relacionamento. Isso previne a dor de cabeça, mas enfraquece a tarefa de criar uma fortuna crítica a respeito das obras.

No Festival de Brasília de anos atrás, por exemplo, um filme pequeno foi visto por pelo menos uma dezena de colegas. Achamos, de modo geral, o resultado muito fraco, e a quase totalidade dos críticos presentes preferiu não escrever, fingir que não tinha visto. Em termos de registro, documentação e reflexão crítica, é possível acreditar hoje que o drama não tenha sido visto por quase ninguém. Teria sido muito mais enriquecedor compreender a pluralidade de vozes negativas, e os motivos pelos quais o projeto incomodou ou decepcionou. Mas é fácil demais falar: alguns diretores se tornam bastante agressivos com opiniões contrárias. Um deles, em particular, me procurou num festival com a intenção explícita de me agredir fisicamente. Fui protegido por colegas, nessa época. Outro conseguiu meu número de telefone e lançou inúmeras ameaças na caixa postal. Depois, apareceu na redação onde eu trabalhava querendo conversar “de homem para homem”.

Mesmo assim, faço questão de publicar os comentários críticos ao filme, inclusive os negativos, justificando cada argumento, ao invés de fazer ataques pessoais. Já as respostas que recebo destes cineastas são sempre pessoais, desmerecendo a pessoa que escreve ao invés dos argumentos levantados. Para quem lê críticas norte-americanas, britânicas, francesas e afins, é fácil perceber que a nossa é uma das mais dóceis, domesticadas e melindradas por aí. Os franceses são irônicos, jocosos, e os textos do The Guardian contêm um grau impressionante de ironia – lembrando a função da crítica enquanto gênero literário autônomo. Nós, brasileiros, temos medo de incomodar, de ser punidos por isso (pela distribuidora, pelos produtores, sendo privados de entrevistas e credenciais de imprensa). Por isso, nos acovardamos, ou deixamos de mencionar que nos incomoda.

Ora, a condescendência é tão nociva quanto o ataque frontal: críticos grandes chegam a afirmar que todo filme brasileiro ganha instantaneamente “uma estrelinha a mais”, por causa da dificuldade de realização. Essa clemência se traduz, involuntariamente, em arrogância, como se os filmes precisassem de nossa validação e nossa nota positiva para existirem socialmente. Não podemos acreditar numa função exagerada e determinante do nosso trabalho. Tratar as obras nacionais como mais frágeis que as estrangeiras, como “café com leite” perto do produto estrangeiro se traduz num paternalismo nada benéfico à produção nacional. Temos filmes mais que suficientes, de altíssima qualidade, para abandonarmos tal estratégia.

Euller Felix: Tem algum texto crítico ou livro que tenha sido fundamental pra sua formação e para o seu olhar para o cinema?

Bruno Carmelo: Muitos livros e textos críticos foram fundamentais na minha formação. Acredito que, no Brasil, somos influenciados até demais por uma cinefilia clássica, autoral, que busca legitimar a crítica pelo amor aos filmes. Ora, amar o filme pode ser um valor moral interessante, mas distante da percepção do crítico enquanto profissional, dotado de conhecimentos técnicos, históricos e estéticos capazes de diferenciá-lo do espectador comum. Em outras palavras, o público médio não precisa se justificar quanto à sua interpretação, mas nós precisamos fazê-lo. Aí reside a diferença entre o profissional e o amador.

Por isso, não consigo me identificar com textos “amorosos” do tipo Cinefilia, de Antoine de Baecque, ou A Análise do Filme, de Jacques Aumont e Michel Marie. Trata-se de obras profundamente influentes em suas épocas, porém focadas demais na noção de um valor intrínseco à obra, como se o crítico pudesse detectar a qualidade inerente ao filme. Fui aluno de Jacques Aumont, e ele me garantia que Cidade dos Sonhos era, objetivamente, o melhor filme do século XXI, dispensando questionamentos em contrário. Era algo inegável, cabendo ao crítico desempenhar a função de figura esclarecida, responsável por detectar tais valores e transmiti-los aos reles mortais.

Prefiro livros da vertente sociológica e cognitiva, que estudam a percepção de qualidade, modificável de acordo com as sociedades e subjetividades da época. David Bordwell é um teórico fascinante por enxergar o cinema por este ponto de vista dinâmico e mutável. A Arte do Cinema e Making Meaning são fundamentais neste processo. Pierre-Michel Menger escreveu obras excepcionais também, como O Trabalho Criativo e Retrato do Artista Enquanto Criador. Destacaria também as obras em sociologia da cultura escritas por Nathalie Heinich, como A Fábrica do Patrimônio – Da Catedral à Pequena Colher e A Elite Artista – Excelência e Singularidade em Regime Democrático, que estudam a noção de clássico e o valor mutável das obras de acordo com as comunidades em que se inserem.

Euller Felix: E qual é a função da crítica de cinema pra você?

Bruno Carmelo: Esta é a pergunta mais difícil de todas, para a qual não tenho resposta. No fundo, acredito que eu escreva críticas na tentativa de descobrir para que elas servem. Sou movido pela crença de que possuem um valor inestimável – ainda que não sejam indispensáveis, a exemplo de qualquer forma de arte -, embora eu ironicamente não saiba dizer ao certo para quê. Fiz a mesma pergunta a dezenas de críticos brasileiros durante a dissertação de mestrado, e continuo levantando o questionamento a colegas em vídeos recentes. Escuto muitas respostas válidas que jamais me parecem dar conta do trabalho que executamos. Ora, na falta de resposta melhor, acato em silêncio.

André Bazin acreditava que o crítico tinha como função elevar o gosto do público médio, formando espectadores astutos que passariam a exigir obras refinadas, num ciclo virtuoso. Trata-se de uma ideia tão bela quanto utópica, além de um tanto soberba. Qual crítico contemporâneo se estima capaz de formar uma nova geração? Serge Daney defendia a figura do “passador”, que transmitia o conhecimento aos espectadores-alunos, como um professor dedicado. A vocação seria menos messiânica do que o crítico esclarecedor de Bazin, mas ainda muito crente no fato de ser lida, respeitada, influente – algo que talvez fosse mais pertinente ao papel da imprensa na França das décadas de 1950 e 1960, quando escreviam. Hoje, lutamos para ser lidos, valorizados, remunerados, respeitados. Demos um passo atrás nessa comunicação, e não consigo me enxergar como possível professor capaz de marcar uma nova geração interessada em cinema.

Fereydoun Hoveyda defendia a crítica-arquivo, cujo sentido se completaria somente nas gerações posteriores, enquanto radiografia das percepções críticas da sociedade naquele tempo específico. Ora, escreveríamos apenas para a posteridade, como homens das cavernas deixando suas marcas, e torcendo para sobreviverem ao apagamento dos tempos virtuais? Vale a pena apostar nosso trabalho numa arqueologia que pode, ou não, vir a existir? A função arquivista me soa importante, porém anexa. Que sejamos estudados, no futuro, por pesquisadores interessados. Mas escrever para o futuro me soa como guardar comida para um possível apocalipse, enquanto se passa fome no presente.

Diversos colegas defendem o crítico enquanto mediador das relações de mercado, dizendo ao espectador o que consumir e o que evitar, o que priorizar, e o que deixar para depois. Muitos o fazem movidos por um sentimento político nobre – seria nosso trabalho fortalecer pequenas obras de pouca visibilidade, em detrimento dos blockbusters de Hollywood. Mesmo assim, a ideia de que o crítico teria como função primordial servir de apêndice ao marketing, aumentando a bilheteria dos filmes pequenos, me soa redutora, próxima demais da publicidade. No caso daqueles que se dedicam a enaltecer apenas o trabalho das majors, nem sequer podemos considerá-los críticos. São garotos-propagandas, mais ou menos assumidos enquanto tais.

Por isso, realmente não sei dizer para que a crítica serve. Ela contribui a fazer com que as obras se inscrevam na cultura e no tempo, mas não se substitui à História. Pode ajudar nas bilheterias, porém nunca deve se confundir com o marketing. Pode contribuir no aprendizado, mas se apequena quando transformada em ferramenta pedagógica. Responder qual é a função da crítica me soa tão difícil, e importante, quanto responder qual é a função da arte, e o que pode ser considerado arte (ou o que pode ser considerado crítica). Não há uma régua precisa, e a própria Nathalie Heinich, mencionada acima, defende que “Arte é tudo aquilo considerado como arte por instâncias legitimadoras do poder”, partindo do conceito de Pierre Bourdieu. Logo, parte-se de uma designação totalmente externa, dependente do mercado, do status, do valor percebido e atribuído por terceiros. A crítica poderia seguir por um caminho parecido. O crítico seria todo aquele percebido como crítico por instâncias legitimadoras do poder – e cada um de nós pode ter em mentes algumas figuras que se limitam a produzir sinopses, elogios, controvérsias fracas. Talvez estes não nos pareçam críticos no sentido estrito de analistas, mas são percebidos socialmente enquanto tais. Enquanto isso, escrevemos na busca de compreender para que serve a nossa escrita.

Euller Felix

Cientista Social, pesquisador e crítico de cinema. Um dos Organizadores dos livros "O Melhor do Terror dos anos 80" e "O Melhor do Terror dos anos 90", ambos publicados pela editora Skript.

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