Sobre cinema e bell hooks

Na verdade o titulo desse texto seria maior: sobre cinema, filmes, listas, críticos e bell hooks. Mas por uma “questão editorial” reduzi para “sobre cinema e bell hooks” por entender que este titulo já enquadra tudo o que pretendo falar. Primeiro, nunca fui aquele tipo de crítico que corre para publicar um texto no calor da hora só pelo motivo de publicar primeiro, não tenho tanto interesse em ser “a vanguarda da discussão”, por isso só agora estou publicando sobre a famosa lista dos melhores filmes de todos os tempos. Segundo que eu acredito que eu precise ter tempo tanto para pensar sobre o assunto, quanto para escrever, não queria publicar algo só pela vontade de publicar. E claro, houve diversos bons textos e discussões sobre o assunto que não senti que havia necessidade de escrever também.

Mas, o que me motivou a escrever não foram os bons textos sobre o assunto, mas indignações com o primeiro lugar da lista. O filme que encabeçou a lista foi “Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles”, de Chantal Akerman e gerou uma grande indignação de uma parcela dos críticos que viram filmes como “Um corpo que cai” de Alfred Hitchcock e “Cidadão Kane” de Orson Welles serem desbancados pelo filme de Akerman. Muitos reclamaram que este filme ou não tinha figurado nas listas anteriores, ou não tinha a qualidade que os outros dois têm, ou que não possuem a relevância de um Hitchcock ou um Welles. Para ser sincero, considero todas essas críticas ao filme da Chantal Akerman como baboseiras e um saudosismo indefensável.

Não, eu não estou dizendo que os filmes de Hitchcock e de Welles mereçam ser esquecidos e que não devam ser discutidos, muito pelo contrário, eles devem ser sim discutidos, mas as discussões sobre o fazer e pensar o cinema precisa ir para além deles. Não vou negar aqui que provavelmente os dois autores estariam em uma lista minha de melhores filmes de todos os tempos, no entanto, defendo que precisamos ir além desses filmes e, principalmente, para outras cinematografias.

Afinal, este não é um papel do crítico e da crítica? De levar e trazer para as discussões os filmes que até então não tinham essa visibilidade? Não é um papel da crítica o de “desbravar” e trazer para o público um debate sobre filmes que antes não tinham um papel central nas discussões? Para mim um crítico é um pesquisador, que está sempre em busca de novas formas de ver e de expressar uma forma artística. Por isso mesmo considero que o papel da lista da revista Sight and Sound cumpriu o seu objetivo. Trouxe para o centro do debate um filme que infelizmente não teria essa mesma visibilidade se não tivesse naquela posição.

Aqui entra a segunda parte do texto: a relação com bell hooks. Em textos e aulas eu sempre cito o quanto minha visão do cinema é influenciada pela leitura que fiz e faço dos textos da bell hooks, considero, inclusive, uma autora fundamental para quem quer e se propõe a pensar o cinema de ontem e principalmente o de hoje.

Em seu livro “Ensinando a transgredir – a educação como prática de liberdade” há um artigo chamado “abraçar a mudança” onde bell hooks fala sobre a dificuldade de incluir na sala de aula os textos de teóricas feministas, sobretudo as feministas negras. Ali ela fala sobre as mais diferentes dificuldades que nós conseguimos trazer para a nossa realidade, principalmente quando o assunto é a discussão sobre cinema feita por aqui.

É muito simples observar isso, basta ver a luta que muitas pessoas tem enfrentado para colocar em pauta as discussões sobre o cinema feito por mulheres e por pessoas negras. Neste sentido eu destaco positivamente as iniciativas como o site Mulher no Cinema e o site Indeterminações que trazem para o debate filmes e pessoas cruciais para o entendimento e o fazer/pensar o cinema nos dias de hoje.

Voltando a hooks e correlacionando com o assunto do textos, em determinado momento do seu artigo ela fala sobre a recusa e resistências de professores, sobretudo os mais velhos, de aceitarem a inclusão de novas referencias. Minha mente logo foi em direção as diversas aulas, textos e falas de colegas críticos que sempre falam sobre a história do cinema com base nos mesmos autores, cineastas de sempre. Como se o cinema fosse feito, desde sua origem até os dias atuais, por homens velhos e brancos. Em muitas dessas aulas e textos eu vi nomes como Alice Guy Blache, Germaine Dulac, Agnes Varda e até mesmo a Chantal Akerman sumariamente apagados da história do cinema, como se não tivessem nenhuma importancia efetiva na evolução da história e da linguagem cinematográfica. O que é por si só um absurdo para quem conhece minimamente a história e os filmes dessas e de outras mulheres que normalmente também não são citadas.

Neste mesmo caminho há uma prática muito comum entre os professores de cinema e que é citada e criticada por hooks em seu artigo: a de passar e tirar a sua própria responsabilidade nesse processo. Explico, quando questionados sobre a falta dessas figuras no cinema muitos propõe para a turma – e normalmente para quem trouxe o tema para o debate – a tarefa de trazerem os filmes e as cineastas que acreditam que tem a importância e deveriam estar incluídas no curso. Ou seja, vira uma responsabilidade da turma de trazer e preencher essas lacunas que o curso acaba tendo.

Uma pequena explicação aqui para que eu não seja mal interpretado: eu considero a sala de aula – seja ela física ou virtual – e a prática de ensinar como algo coletivo, uma relação educador/aluno precisa tanto dos conhecimentos do professor sobre o assunto quanto das intervenções, observações e experiências dos alunos. O que eu narrei aqui no paragrafo anterior é sobre professores que não colocam essas cinematografias nos seus cursos não pelo fato de não conhecerem, mas por não considerarem importantes o suficientes para que estes filmes e estas cineastas como importantes o suficiente para figurarem em seus cursos. É uma escolha orientada pela sua visão de cinema – e normalmente – pela sua visão de mundo.

Nem gosto tanto de listas de filmes, mas entendo o motivo delas existirem. No caso dessa nova lista de filmes da Sight and Sound eu gostei de ver o filme da Chantal Akerman ali na primeiro posição, não só por filme ser incrível – a qualidade dele para mim é algo inquestionável – mas por trazer discussões sobre os filmes como esses que infelizmente não tem a atenção que merecem, e me parece ser algo que pode e precisa se expandir ainda mais.

No caso dos críticos que não gostaram da primeira colocação da lista, ou das diversas discussões que foi possibilitada através dela, digo que a crítica assim como o cinema precisa evoluir. Caso contrário, no futuro, vai parecer e se assemelhar com aquelas figuras do cinema que antes se opunham ao som no cinema em nome de uma “pureza” cinematográfica, quando na verdade era só um medo do novo, e principalmente, medo de ficar para trás. O cinema precisa da crítica, mas para isso, precisam evoluir juntos.

Euller Felix

Cientista Social, pesquisador e crítico de cinema. Um dos Organizadores dos livros "O Melhor do Terror dos anos 80" e "O Melhor do Terror dos anos 90", ambos publicados pela editora Skript.

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