Dialética Crítica: Humberto Silva

Continuando a série de entrevistas com críticos que considero importante para o pensamento cinematográfico brasileiro, hoje eu entrevisto Humberto Silva. Gosto muito da postura dele, principalmente buscando continuar diálogos com as pessoas nas redes sociais, sobretudo os jovens críticos. Me parece um pensador que não se contenta em ficar parada em um lugar comum e que busca sempre aprender e compreender.

Humberto é um grande estudioso e um professor de cinema. Contribuiu para revistas e sites de cinema, além de escrever dois livros. Um sobre Glauber Rocha e outro que tem reunido uma parte de seus textos.

Hoje em dia ele contribui para o site Cinema Escrito.

ENTREVISTA

Euller Felix: Você faz crítica de cinema há um bom tempo.  E vejo que você está sempre lendo a produção feitas por jovens críticos. Como você vê a crítica nos dias e na forma em que ela está sendo feita hoje?

Humberto Silva: A crítica de cinema pode assumir um escopo bem amplo. Numa iniciativa pioneira, a Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) lançou – e o recomendo pois para mim basilar – Trajetória da crítica de cinema no Brasil, com ensaios sobre os primórdios e os personagens mais destacados da crítica em diversos estados. Com sua pergunta, mais especificamente remeto o leitor ao artigo “Uma introdução à crítica de cinema na internet”, escrito pelo Bruno Carmelo.   

Certo, mas começo a responder tendo na memória os primórdios da “crítica” no Rio de Janeiro e o pioneirismo de Arthur Azevedo; irmão, aliás, do escritor Aluízio Azevedo. Bem, mas o que se tem dele – e que sinaliza para o que de algum modo chamamos pelo nome de crítica – são textos que caberiam como crônicas. Arthur Azevedo abordava menos o que via na tela do que descrevia o ambiente social em que o filme foi exibido, a reação do público diante da novidade. Há, contudo, quem atribui a ele a primazia de ser o primeiro crítico de cinema no Brasil a ter o nome assinado numa publicação; no caso, o periódico O Paiz.

Então, dependendo da época e do contexto, o que se entende como crítica de cinema assume feição particular, conforme condicionantes de cada momento: vinte ou trinta anos atrás, não havia meios que hoje nos possibilitam falar, escrever, sobre cinema. Disso decorre que há uma proliferação estupenda de pessoas que falam e escrevem sobre filmes. Esta semana mesmo, para uma aula sobre a “montagem soviética”, abri o Youtube e me espantei com a quantidade de canais que “explicam” os diversos momentos do cinema soviético nos anos de 1920.

Eu vejo essa expansão do “exercício da crítica” de forma bem positiva, pois muitos podem se manifestar, mesmo não tendo formação específica em cinema ou jornalismo. Anos atrás isso seria impossível com os veículos da imprensa impressa. Assim, a proliferação de sites, blogs, canais no Youtube, podcast com crítica, ou comentários diversos sobre cinema, abre um leque a que tanto profissionais quanto o público em geral possa ter opções para checar dados, opiniões ou mesmo saciar curiosidade a respeito de um filme ou de um diretor, ou de uma diretora de cinema. Com a internet, é só dar um google, como se diz, e abrir um link a hora que convir.

(Ponto. Passo para o lado escuro da lua). Lembro aqui uma já famosa asserção de meu xará italiano, Umberto Eco: “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”. Esta asserção de Eco pode ser encontrada em muito do que se escreve e do que se fala sobre cinema em canais no Youtube, em blogs, podcast, comentários rápidos no Facebook e portais na internet como o UOL. Embora demonstre ser bem informado sobre o mundo pop, e com um trajeto respeitado desde a SET, leio o Roberto Sodovski do UOL como exemplo do que não aprecio num crítico. Há uma massificação infinda da superficialidade, de lugares comuns.

É o caso então ponderar que, com efeitos tanto positivos quanto negativos, aquilo que de algum modo podemos chamar pelo nome de “crítica de cinema” hoje revela na devida proporção a dimensão do cinema como “arte de massa” – ou de indústria voltada para o consumo na ordem capitalista –, quando colocamos do lado dele outras formas de expressão artística como a literatura, o teatro, as artes plásticas…, mesmo a fotografia… As opiniões pululam e o leitor, espectador ou ouvinte, tem lado a lado um crítico com forte base intelectual e alguém que se expressa sem saber ao certo como a engrenagem do cinema se move. 

Euller Felix: Você tem um livro sobre Glauber Rocha, e dele Deus e o Diabo na Terra do Sol foi o único filme brasileiro presente no Festival de Cannes neste ano. Qual a importância da restauração dessa obra e de ainda estarmos falando de Glauber e de muitos cineastas do Cinema Novo e do Cinema Marginal brasileiro?

Humberto Silva: A ausência de filmes brasileiros nas diversas seleções de Cannes deste ano sinaliza um tanto para o momento um tanto conturbado em nosso cinema de 2018 para cá… Para chegamos a isso penso que diversas variáveis entram em jogo, e que não têm exatamente a ver com o valor artístico do que tem sido realizado. Inscrever e ter um filme selecionado e exibido nas mostras competitivas em Cannes supõe caminhos e estratégias que têm muito a ver com motivações externas ao filme, humores que ignoramos: Deserto Particular, que foi indicado ao Oscar, é tão inferior a Bacurau, que foi premiado em Cannes em 2019? Ou que A Vida Invisível, também premiado em Cannes no mesmo ano? Não tenho em vista que o cinema brasileiro nesse intervalo de três anos tenha caído de uma dupla premiação no mesmo ano à insignificância. 

A se realçar, com esses dois filmes premiados – Bacurau ganhou o Prêmio do Juri e Vida Invisível o Prêmio Um Certo Olhar –, as Companhias produtoras e como foi feita a distribuição. No primeiro, a Globo Filmes, a SBS Distribuition (França)…; no segundo, a RT Features, a Amazon Studios…; quando me refiro a variáveis que entram no jogo, esse é o ponto que julgo determinante; esse para mim o ponto em que se definem estratégias de inscrição em um festival como o de Cannes.

Quanto a Glauber e Deus e o Diabo na Terra do Sol, foi exibido na Sessão Cannes Classics, em cópia restaurada em 4K. Portanto, numa situação bem particular. Do que li aqui, a Salle Buñuel, em que foi exibido, estava cheia. Agora, sobre a importância de Deus e o Diabo e Glauber é um pouco chover no molhado. Replico aqui as palavras de Cacá Diegues, na contracapa de meu livro, Glauber Rocha – cinema, estética e revolução: “Glauber Rocha inventou o cinema do Terceiro Mundo”. Sob esse aspecto, entendo que, para a história do cinema em âmbito mundial, ele é tão importante quanto Eisenstein, Fritz Lang, Orson Welles ou Jean-Luc Godard. Glauber colocou o cinema do Terceiro Mundo – hoje diríamos Cinemas Periféricos, seguindo a estudiosa Ivonete Pinto da Federal de Pelotas – no mapa da cinematografia mundial.

Por acaso, estou estudando o cinema chinês da 5ª geração. Revi ontem Terra Amarela (1984), de Chen Keige. Ao vê-lo, senti o quanto se pode notar a importância de Glauber para o cinema chinês que se projetou para o mundo exatos vinte anos após Deus e o Diabo. Nos planos abertos com a terra amarela de Keige, inevitável não pensar no sertão de Glauber. Não há historiador sério de cinema – tomemos um referencial como David Bordwell – que não acentue o destacado papel de Glauber e seu cinema na eclosão de cinematografias periféricas, ou do Terceiro Mundo, nos anos de 1960. 

Lembro, para não ser injusto, que antes de Glauber o indiano Satyajit Ray e o egípcio Youssef Chahine fizeram circular pelo mundo filmes como a Trilogia de Apu (1955-58) e A Estação Central do Cairo (1958). Mas, bem entendido, eles não conduziram em seus países um movimento de renovação do cinema como Glauber o fez com o Cinema Novo.

Agora, retomo novamente Cacá, na contracapa de meu livro: “Glauber foi um cometa…”; uma aparição, portanto, singular, cuja presença ilumina nosso espaço em um movimento cíclico. Desaparece para reaparecer e nos lembrar de sua presença. A esse respeito, importante para mim, não cabe comparação entre Glauber e qualquer outro extraordinário realizador do Cinema Novo, Marginal ou de qualquer época no cinema nacional Novamente para não ser injusto, José Mojica Marins não pode ser ignorando; mas atrás dele não reside um projeto de inserção de seu cinema na ordem mundial.

O impacto da obra de Glauber em âmbito mundial é desmedido, como se pode sentir pela declaração de Bong Joon-ho, diretor do premiadíssimo Parasita (2019): “Deus e o Diabo é o filme que jamais saiu de minha cabeça. É impressionante, ainda hoje fico de boca aberta ao rever aquela maravilha”. E, veja, quão distante no tempo e no espaço ele está de Glauber Rocha.

Euller Felix: Você é professor de história do cinema, certo? Uma coisa que tem me incomodado bastante quando estou lendo ou ouvindo alguém falar sobre a história do cinema é o apagamento de várias contribuições importantes para a linguagem do cinema, principalmente de mulheres e de pessoas não brancas em geral. Como professor, como você vê isso e como tenta remediar essas lacunas? 

Humberto Silva: Está é uma pergunta bem importante. A História é caprichosa. Quem lê o que eu escrevo vê que esse é um mantra em meus textos. A história é escrita e reescrita conforme humores e condicionantes de cada momento. Ao mesmo tempo ela aponta para o passado e diz respeito a indagações do presente. Estas, por sua vez, impulsionam interpretações diversas e se orientam por caminhos distintos dos que foram tomados para sua escrita no passado. A escrita da história também tem história a ser escrita. 

A história do cinema escrita por Georges Sadoul reflete os embates nos anos de 1940 e 1950 em torno do Realismo Socialista, do Cinema Francês de Qualidade e da produção norte-americana no Sistema de Estúdios. Décadas depois, David Bordwell trilhará outros caminhos para escrever sua história, com a eclosão do cinema do Terceiro Mundo tendo Glauber na linha de frente. 

Nos dias que correm, com novas fontes de pesquisa e o impulso de estudiosos com forte influência no debate, para ficarmos na produção das mulheres, nomes importantes ganham destaque que não tiveram. Assim, só recentemente, uma cineasta como Alice Guy-Blaché, dos primórdios do cinema, passa a ser vista de uma forma que não foi contemplada, por exemplo, numa história do cinema como a de Sadoul. Nesse sentido, de preenchimento de lacunas, para mim é da mais alta relevância mais um livro publicado por iniciativa da Abraccine: Mulheres Atrás das Câmaras, uma coletânea que resgata o trabalho de importantes mulheres no cinema brasileiro.

Como procuro remediar lacunas? Ao afirmar que “a história é caprichosa”, tenho em vista que a escrita da história, justamente, não se separa dos jogos de poder. Com isso, para mim, não se trata de preencher lacunas e evidenciar a “verdade” definitiva, mas sim que nos jogos de poder me cabe manifestar sobre filmes, diretores e diretoras que fazem jus a um papel que, na esfera do poder, foi solenemente esquecido. Citei Guy-Blaché, não podemos esquecer – e não esqueço – que Oscar Micheaux, um negro, realizou Dentro de Nossas Portas (1920) como uma espécie de resposta ao racista e incontornável O Nascimento de Uma Nação (1915), de D. W. Griffith.

Euller Felix: Tem algum livro ou texto crítico que foi fundamental para a sua formação e a formação do seu pensamento crítico e de cinema?

Humberto Silva: Fora do Brasil, André Bazin e Serge Daney são os críticos de cinema cujas leituras foram fundamentais para minha formação; dos que estão em atividade, um pouco mais velhos que eu, tenho admiração por Serge Toubiana e Jean-Michel Frodon. Leio-os sempre que posso. Tenho presente o que para eles é exercício da crítica. Mas não os emulo. Quer dizer, não adoto um estilo de escrita que os tenha por modelo. Nesse sentido, pela maneira como compõe a redação de um texto crítico, tenho por referência o carioca José Lino Grünewald. Do ponto de vista estilístico, da redação propriamente, da elaboração da estrutura do parágrafo e da pontuação, é o crítico que mais procuro imitar.

No Brasil, ainda, tenho enorme apreço pelo José Geraldo Couto, pelo Carlos Alberto Mattos e pelo Luiz Zanin. Mas minha maneira de compor o texto difere da deles. Sou menos cinéfilo que eles, tenho menos trejeitos jornalísticos e, em decorrência, meu texto traz um acento culturalista com remissões à história e à política em sentido amplo. É onde me sinto mais seguro para escrever. Ah, uma nota talvez inoportuna. Das gerações mais jovens que a minha, nos últimos dias tenho dado especial atenção ao Bruno Carmelo. Bastante inteligente e sensível, é um jovem crítico cuja abordagem de um filme me faz pensar.

Euller Felix: Qual é a função da crítica de cinema para você?

Humberto Silva: Está é uma pergunta de resposta complexa e repleta de controvérsias. Quando respondi à primeira pergunta desta entrevista, fiz ver como a expressão “crítica de cinema” assume contornos distintos de uma época para outra. Assim sendo, o que se poderia entender como função da crítica no tempo em que Arthur Azevedo escreveu não é a mesma coisa hoje, quando se vê algo como “crítica de cinema” publicado numa rede social como o Facebook. Então, para mim, em primeiro lugar cabe indagar sobre os meios utilizados para, com relação a eles, ponderar sobre a função da crítica. E isso, a ponderação, não é uma coisa simples, se não ficarmos na mera especulação.

Qual a importância, da divulgação de uma crítica do José Geraldo Couto ou do Carlos Alberto Mattos no Facebook? Quantas curtidas e compartilhamentos eles tiveram? Como serão lidos e em que medida quem os curtiu, compartilhou, são impulsionados a ver o que divulgam? Não creio que temos uma resposta que nos permita dizer que o exercício que eles propõem tem a função tal e tal…

De qualquer forma, uma resposta clichê à sua pergunta é que o crítico é o intermediário entre um filme e o espectador em sua multiplicidade indefinida. O quanto essa mediação efetivamente ocorre é incomensurável. Mas, se eu escapar um tico do clichê, entendo que a crítica de cinema, num circuito que envolve cinéfilos, apaixonados por cinema e os próprios críticos, possibilita mobilizar debates, discussões em torno de um filme. E com isso, em grande parte, ao mesmo tempo em que serve como instrumento de divulgação, a chamada “fortuna crítica”, sinaliza para o lugar que um filme pode ocupar na história do cinema.

Tropa de Elite (2007) é um filme que estimulou sentimentos fascistas antes adormecidos em nossa sociedade? Esta uma proposição feita quando esse filme foi lançado. Independente de sua afirmação ou negação, essa proposição mobilizou discussões sobre intenções implícitas ou explícitas de seu realizador. E essas discussões de algum modo implicam no que hoje se diz e se estuda sobre esse filme. Ou seja, a crítica de cinema, feita no calor da hora, potencializa discussões que vão além do momento em que foi escrita, ou falada. Com isso, ela carrega indícios de como um filme, um diretor ou diretora serão vistos na história, ou eventualmente ignorados. 

Euller Felix

Cientista Social, pesquisador e crítico de cinema. Um dos Organizadores dos livros "O Melhor do Terror dos anos 80" e "O Melhor do Terror dos anos 90", ambos publicados pela editora Skript.

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