Dialética Crítica: Eduardo Valente

Vou repetir algo que já havia falado aqui no blog e nessa série de entrevistas: a Contracampo é uma referência enorme para mim. Muito de como eu escrevo e do que pretendo com minhas discussões é impactada diretamente pela revista, uso muito ela como uma referência de como se fazer uma boa crítica.

Considero essencial a leitura de algumas edições para todas as pessoas cinefilas, críticas, pesquisadoras ou simplesmente apaixonadas por cinema. A Contracampo foi um evento essencial na crítica brasileira e tem influências até os dias de hoje.

A entrevista de hoje é com Eduardo Valente, uma figura importante da crítica brasileira e que contribuiu durante muito tempo na Contracampo e na Revista Cinética.

ENTREVISTA

Euller Felix: A Contracampo foi um momento fundamental da crítica brasileira. Você pode falar um pouco de como você avalia a trajetória e o impacto que a revista teve?

Eduardo Valente: Acho difícil pra quem participou muito por dentro conseguir enxergar com clareza essa questão do impacto. É uma coisa mais fácil de julgar de um olhar de fora, por quem leu ou acompanhou ela historicamente. Eu acho que foi um momento muito singular em vários níveis, a gente tava tendo uma troca de tecnologias por assim dizer, a internet passando a ser um espaço acessível, tanto para quem queria publicar quanto para serem lidas, estávamos em um processo de estabelecimento.


A gente tinha ali um grupo grande de pessoas muito jovens e muito dispostas e afim de produzir alguma coisa em termos de reflexão crítica, a partir e sobre cinema. E eu acho que é uma coisa que depende muito das coisas acontecerem na hora certa, então de fato foi um acontecimento muito feliz daquele momento em que abria novos campos e tinha um grupo disposto e disponível pra isso. Que soube evoluir e criar coisas ali dentro.


Agora sem dúvidas foi bastante significativa e acho que permitiu tanto uma dessacralização de um determinado universo “oficial” dos jornais e das revistas impressas legitimadoras, por assim dizer, pro pensamento crítico, fazendo uma transição para onde a gente está hoje né, que é um lugar muito mais amplo de universos, onde críticos e jovens críticos podem se exprimir nos caminhos mais diferentes, eu acho que estávamos em um momento de transição onde a revista permitiu tanto para realizadores quanto para críticos jovens enxergarem que existiam outros caminhos possíveis né, e a partir disso uma série de possibilidades interessantes se abriram. Tanto para pessoas da própria revista, quanto para pessoas que gostavam de ler crítica e participar da crítica, quanto nesse sentido de inspiração para gerações seguintes, para modelos de trabalho. Usando aquela expressão tradicional né: “estávamos no lugar certo e na hora certa” talvez. E acho que também tinha haver com a chamada “retomada” do cinema brasileiro um pouco ali, então também tinha um outro movimento acontecendo no cinema brasileiro: logo depois o cinema passa por uma rápida atualização tecnológica com a coisa do digital, que ampliou muito a chegada de novos nomes na direção de longas, uma multiplicação na produção de curtas, os festivais de cinema se espalhando no Brasil inteiro. Acho que juntou um monte de coisas num determinado momento histórico que acabou sendo um acontecimento muito feliz, pra nós certamente enquanto pessoas, envolvidas ali, quanto pra uma série de possibilidades de intervenções.

Euller Felix: Na edição 24 da Contracampo vocês fazem um debate sobre a função da crítica. Mais de 20 anos atrás e muitas daquelas questões ainda parecem estar presente na crítica hoje. Meio que um complemento da pergunta anterior, como você vê a produção crítica de hoje?

Eduardo Valente: Eu já respondi sobre essa questão das chamadas crises da crítica, que eu acho que a crítica, assim como o mundo em um certo sentido e assim como o Brasil certamente, está constantemente em crise. Mas acho que isso não é um problema, não é uma crise dessas pra que vai se encontrar uma solução, nem uma crise no sentido de que está pior agora do que antes: é uma crise em um sentimento de que constantemente está precisando ser alterada, de ser repensada, ser colocada

contra a parede, precisando ser renovado. Então acho que a situação das crises, o que se altera com os tempos que vão passando é o que está em jogo em cada momento. 

Então ali nessa edição da revista tem o que eu falei na resposta anterior: a gente estava em um momento bem especifico, aonde um modelo anterior, que é aquele modelo da crítica colocada na grande mídia, na mídia impressa, no jornal diário, na revista semanal, na revista especifica impressa de cinema, como era a Set, ele estava em crise por vários motivos dentro desse universo. Por outro lado, tinha várias possibilidades se abrindo, das quais a Contracampo era uma das representantes, mas tinham várias outras e teriam várias outras depois principalmente. Essa era uma crise daquele momento, e ela vai mudando. Mas esse estado de crise é uma constante da vida, acredito eu, e na crítica não é diferente. Acho que hoje são outras crises, hoje a gente tem que lidar com essa ideia de que a internet se tornou um fenômeno eminentemente mediado pelas redes sociais, em vários níveis isso, que é um realidade bem diferente do que a gente viveu na Contracampo entre 1998 quando ela é criada até 2010. Era uma outra circunstância do uso da internet, da circulação de informação, e as redes sociais vieram alterar muito isso, em vários níveis, de como as pessoas ficam sabendo das coisas, como elas acompanham as coisas, como elas chegam até as coisas, como elas repercutem as coisas, qual é o lugar que tem para a reflexão para a escrita. Acho que hoje as crises são outras, as dificuldades são outras, os dilemas são outros, as potencialidades são outras, mas se mantem essa circunstância de que o produto da reflexão crítica deve ser constantemente repensado, constantemente colocado contra a parede, voltar a pensar qual é o lugar dele, com quem que ele se comunica de fato, o que ele busca, isso não se altera. 

Hoje eu gosto tanto de acompanhar algumas pessoas em determinadas revistas e sites de críticas mais constantes, com modelos mais próximos da Contracampo em termos de revistas com edições, que a gente ainda tem, mas também gosto muito de acompanhar algumas pessoas no Letterboxd, por exemplo, que é uma radicalização antiga do blog se somando à ideia da rede social, e gerando uma coisa totalmente nova e diferente – que às vezes pode ser extremamente fútil e desinteressante, mas em outros momentos pode ser profundamente instigante e criar pontes muito interessantes. Acho que cada momento tem suas potencialidades e suas crises, e eu gosto de ir acompanhando eles, acho que tem muita coisa pra se ver ainda no lugar da crítica, independente da circunstância atual.

Euller Felix: Quando te chamei pra essa conversa você disse que não considera que esteja mais exercendo o ofício de crítico exatamente. Você acabou se afastando por algum motivo?

Eduardo Valente: Eu me afastei por vários motivos. Seria uma soma, acho. Como nossos professores de história ensinavam pra gente na escola, nada acontece por um motivo só, né? Não uma grande explicação única, sempre é uma soma de coisas complexas, muito amplas, mas eu diria o motivo principal que suplanta os outros é que eu passei ali quase 15 anos entre o início da Contracampo e o momento em que eu saí da Cinética e parei de escrever constantemente, em 2011. Foram 13 anos em que eu escrevi cotidianamente. Até criaram, há pouco tempo, tanto da Cinética quanto da Contracampo, um desses perfis no Letterboxd que publica os textos antigos, aí eu fui vendo e eu mesmo não tenho tanta noção de quanto eu escrevi, quantos textos e quantas coisas, é muito mais até do que eu teria capacidade hoje em dia de entender que eu fiz. Aí eu acho que isso levou a um certo sentimento de esgotamento: eu estava um pouco esgotado, no sentido do cansaço, mas também esgotado no sentido de achar e duvidar se eu ainda tinha algo a dizer, sabe? E no sentido de que eu acho que o fazer crítico, se você não toma cuidado e descobre maneiras de se reinventar por meio dele constantemente, você pode acabar se repetindo bastante. Você começa a usar filmes diferentes, por assim dizer, cineastas diferentes, pra repetir certas ideias que você já trabalhou, já teve antes, já aplicou em outro momento e num certo momento isso passa a ser uma coisa um pouco automática, que eu acho muito perigosa quando o crítico não se dá conta de que tá passando por isso. Porque os filmes são sempre outros, são sempre novos, são sempre diferentes e num certo sentido, eu diria que eles não merecem esse tratamento, que a gente não dedique a eles um olhar também diferente, também renovado. Mas muitas vezes a gente simplesmente não consegue. E eu acho que foi nesse momento que eu parei efetivamente o exercício crítico. 

Porque esse trabalho é um trabalho diário, é um trabalho semanal no mínimo, é um trabalho constante pra ser realmente um trabalho. Um ofício, né? Então quando parei com esse ofício, foi um pouco por isso. Claro que houve outras circunstâncias, tanto de vida pessoal quanto de vida profissional que foram me levando pra outros caminhos, mas eu seria capaz, digamos de combinar essas coisas e criar uma outra situação, se eu visse um sentido maior nisso, mas eu acho que eu já estava um pouco com o sentimento de que eu ao escrever os textos e ao ler os meus textos depois pra revisão ou por algum outro motivo eu sentia que eles demonstravam esse cansaço. Eles demonstravam alguém já um pouco automatizado, e trabalhando a partir de pressupostos que não estavam se renovando, não estava conseguindo encontrar um lugar pra novas formas de lidar com novos objetos e eu acho que às vezes as pessoas passam por isso. Acho importante saber que talvez seja um momento de mudar, de fazer uma outra coisa, de propor um outro olhar, de trazer uma outra contribuição pra que você não se torne um pouco uma sombra de si mesmo.

Eu estava nesse momento mais interessado em outras coisas também, foi um momento que eu fui trabalhar na Ancine, então me interessava muito a política pública do audiovisual no Brasil naquele momento, em como colaborar com essa política, como pensar coisas a partir dela. Me interessava mais nas coisas que eu já fazia há muito tempo, que eram a questão da programação e da curadoria de festivais, mas era algo que eu estava muito mais próximo de estar interessado, instigado, naquele momento do que no exercício da crítica. Então eu continuei fazendo coisas bem eventuais, algumas coberturas no festival de Cannes principalmente. Uma coisa aqui e outra ali. Hoje em dia publico umas coisas no Letterboxd que eu não chamaria de crítica no sentido que eu entendo esse tipo de texto, mas que faz parte de um ambiente maior da crítica. 

Euller Felix: Tem algum texto crítico ou livro que tenha sido fundamental pra sua formação e para o seu olhar para o cinema?

Eduardo Valente: É uma pergunta difícil, né? Porque tem muita coisa que foi fundamental, desde coisas antigas, históricas, clássicas por assim dizer, até os meus contemporâneos. E aí eu digo meus contemporâneos não só da minha geração mas aqueles que eu lia o tempo inteiro enquanto estava produzindo a minha crítica, e eles me ajudavam a me formar enquanto eu escrevia. Eu fui formado por aqueles que estavam ao meu entorno, eu digo os meus contemporâneos também e mesmo de gerações anteriores que seguiam escrevendo – como o próprio Inácio Araújo, o Jean-Claude Bernardet, e outras figuras de gerações anteriores, mas que ainda estavam escrevendo e extremamente ativos no momento em que a gente começou a escrever. Então eu acho que eu sempre fui muito formado pelo que estava acontecendo ao meu redor. 

Mas se fosse pra citar coisas mais clássicas ou textos publicados em livros e tal, tinham duas coletâneas que pra mim foram muito importantes, porque eu li cedo logo antes de entrar na universidade, e que pra mim foram basilares pra ter uma ideia do que podia ser o exercício crítico, né? E foram a coletânea dos textos do Luiz de Almeida Salles publicada já há um bom tempo chamada “Cinema e Verdade”, que tem muitos textos dele e foram publicados ao longo de uma história longa de produção crítica. E acho que é meio comum em um certo sentido, mas essencial de citar as coletâneas do Paulo Emílio, né, do Suplemento Literário: aqueles dois volumes bem grossos que tem vários textos curtos, que eram os textos dele pro suplemento literário do jornal, então cada texto era bem curto, mas eram muitos e eu li aquilo muito como quase pílulas assim ao longo de um período muito grande de tempo. E eu acho que nos dois casos me interessava muito ver uma paixão que salta das páginas né? Uma paixão pelo objeto cinematográfico muito grande. Mas, principalmente do lado do Paulo Emílio uma vontade de intervir na realização do que está sendo feito naquele momento, ao redor dele. E intervir no bom sentido: não um intervir no sentido de uma intervenção autoritária, mas de uma intervenção no sentido de diálogo. Que escrevendo ele tivesse um diálogo constante com aquelas pessoas que estavam fazendo cinema ao redor dele. Então acho que esses dois livros foram muito importantes. Assim como depois outras coletâneas, do Alex Viany, José Carlos Avellar, pra ficar só nos brasileiros que sempre foram muito importantes pra mim. Claro que eu li muita coisa dos estrangeiros, algumas no original, algumas das poucas que eram mais traduzidas, entre Bazin, Daney e todo um universo de críticos franceses, americanos, alguns ingleses, mas os brasileiros sempre me interessavam mais. Porque estão falando mais de perto mesmo, né. E aí eu diria que Paulo Emílio e e Almeida Sales foram muito importantes e esses livros pra mim naquele momento de adolescência, início de juventude, saindo de escola, entrando na universidade pra apresentar um certo olhar sobre o que podia ser a crítica.

Euller Felix: E qual é a função da crítica de cinema pra você?

Eduardo Valente: Pra mim, cara, a função da crítica está ligada a uma palavra que eu gosto muito pra quase tudo na vida, mas para a crítica certamente pra mim é essencial, que é a ideia de expansão. Eu sempre pensei a crítica, tanto no meu fazer, mas também no que eu gostava de ler, pelos quais eu fui chegando perto dela, da cinefilia na adolescência, depois na passagem pela universidade de cinema, pelos meus amigos, sempre passou pela ideia da expansão. Expansão de quê? Expansão da experiência da arte, no caso do cinema. Como fazer com que aquele sentimento que a gente passa quando a gente tá vendo um filme subjetivamente dentro de nós, consiga de alguma forma dar uma outra resposta que no caso são os textos. E que essas respostas consigam levar aqueles filmes mais além, no sentido de contatar outras pessoas de maneiras diferentes, fazer com que elas pensem aquele filme com outros olhares, vendo outros aspectos. Eventualmente até que os próprios realizadores dos filmes possam pensar os seus próprios filmes a partir de outros pontos de vista. 

A gente tinha muito esse retorno na época na Contracampo, e na própria Cinética. Ao fazer alguns textos a gente de vez em quando encontrava com cineastas em sessões em geral, ou em debate e muitas vezes eu ouvi isso dos cineastas. Às vezes inclusive de textos que eu sei que eu tinha sido duro, em que eu não tinha gostado do filme, deles dizerem “pô, mas eu achei muito interessante, porque me fez olhar por um outro lado, não necessariamente eu concordo, mas não mesmo não concordando, eu tive que pensar diferente.” Então, pra mim esse sempre foi o lugar da crítica, é a possibilidade da expansão. 

Acho que ela como julgamento de qualidade, estabelecimento de cânones, tudo isso faz parte um pouco do que se passou a ser o lugar dela no mundo, e eu entendo, mas não é o que me atrai, não é o que eu gosto, tanto que eu nunca gostei por exemplo de fazer listas, nisso eu sou até meio folclórico, conhecido aí entre os meus amigos por causa disso, porque muitas vezes eles propõem listas as mais variadas e interessantes e eu estou sempre recusando, não gosto dessa coisa das listas de melhores. Não gosto dessa coisa do entendimento de uma editoria crítica pra um site, pra uma revista a partir de uma ideia de cânone, de sacralizar determinadas obras ou figuras e por outro lado detonar e acabar com outras. Entendo porque isso acontece, porque isso é importante para algumas pessoas, e talvez para o setor como um todo, mas pra mim pessoalmente me interessa muito pouco. Assim como me interessa muito pouco pensar a crítica a partir desse ponto de vista do dogma, tanto um dogma sobre o cinema quanto dogma sobre a própria crítica, de que a crítica deve ser de tal forma. 

Eu me interessei por textos críticos dos mais diversos ao longo da vida, escritos por pessoas com pressupostos, escolas e modelos teóricos totalmente distintos, que eventualmente me interessava quando ao ler uma determinada coisa aquilo me dava uma luz, me colocava uma ideia de uma forma que eu não tinha de outra maneira que não fosse a de ter lido aquele texto. Então pra mim isso ultrapassa qualquer dogma, qualquer possibilidade de reduzir o cinema. Muita gente trabalha reduzindo o cinema, né? “O cinema deve ser isso, só pode ser isso, assim ele é bom, assim ele é ruim”… e sempre que a crítica vai por esse caminho, que eu entendo como um caminho de redução, é pra mim aonde ela fica menos interessante. Pra mim, me interessou sempre a expansão. É essa ideia de que, a partir de um texto, a gente possa rever um filme, seja na prática, de parar e querer ir lá e assistir de novo, o que é o ideal, mas nem sempre isso é possível, seja rever na nossa memória, na nossa imaginação, no nosso pensamento, repensar o que a gente já pensou e pra mim é isso, assim, a função da crítica

No Cinema, no nosso caso, que é o que a gente lida, acho que em geral o lugar da crítica é esse da expansão, que faz ir além. No filme do Kleber Mendonça, o “Crítico”, que analisa um pouco essas relações entre cineastas e críticos e fala um pouco do fazer crítico, eu dou uma entrevista rápida lá e falo uma coisa ali que pra mim é muito essa ideia: uma coisa de “tirar o filme pra dançar”. A crítica pra mim, parte desse ponto de vista, né? Que é uma ideia poética, digamos assim, bem ampla, de você pegar ali algo como ele vem, como chega e aí pegar o filme e fazer algo com ele, criar um ritmo junto. Algo novo, diferente, um movimento conjunto entre o filme e você e aquilo ali gerar uma coisa nova, é essa a dança pra mim. Eu sempre achei isso mais interessante do que o lugar do vaticínio ou do esclarecimento, do “e agora vamos dizer o que é de verdade esse filme, agora vamos ver qual o lugar dele na história do cinema e importância”. Isso pra mim, na real, me interessa bem pouco.

Euller Felix

Cientista Social, pesquisador e crítico de cinema. Um dos Organizadores dos livros "O Melhor do Terror dos anos 80" e "O Melhor do Terror dos anos 90", ambos publicados pela editora Skript.

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