Dialética Crítica: Francis Vogner dos Reis

O cinema para mim é debate. A critica pra mim serve para isso, debater. O objetivo principal de eu ter feito esse blog e buscar pessoas para entrevistar é literalmente fazer esse diálogo que eu tanto sinto falta na crítica brasileira. Compreender pensamentos, gerar mais duvidas, e o principal de tudo: dialogar.

Hoje converso com mais uma das minhas referências, Francis Vogner dos Reis. É crítico, curador e realizador. Uso seus textos sempre nos meus cursos, e o livro “O Autor no Cinema” de Jean-Claude Bernadert e que tem textos seus debatendo no final de cada capitulo é, talvez, o meu livro favorito de cinema publicado aqui no Brasil.

Francis foi um dos colaboradores da Revista Cinética e é uma presença muito importante na Mostra de Cinema de Tiradentes , quem não conhece ele e gosta de estudar cinema precisa buscar mais sobre seus textos e debates que estão em diversos catálogos.

Vou deixar aqui o link de um texto dele que eu gosto bastante, foi publicado no livro do Bernadert e republicada na Revista Cinética.

http://revistacinetica.com.br/nova/francis-mojica-autor/

ENTREVISTA

Euller Felix: Um dos autores mais importantes na minha formação enquanto crítico é o Jean-Claude Bernardet e um dos livros que mais gostei foi o “Autor no Cinema” que tem uma contribuição sua. Pode falar um pouco sobre como foi essa experiência?

Francis Vogner dos Reis: Minha conversa com Jean-Claude Bernardet vem de alguns anos. É um encontro intelectual cheio de surpresas e também de divergências que nunca terminam no intransponível. É um cara muito generoso. O livro é exemplar dessa conversa, o livro se tornou na sua segunda edição um desdobramento dessa dinâmica de diálogo. Quando o convidaram para a reedição de O Autor no Cinema ele não quis escrever um texto introdutório atualizando os originais, mas me convidou para escrever capítulos em debate com os originais e assim o fiz. E a partir daí ele se animou a escrever pequenas intervenções fazendo tréplicas às minhas réplicas.

No caso do capítulo domínio francês a gente diverge. No domínio brasileiro há um diálogo fértil. Minha questão com a demolição de autoria que ele faz é que acho que ela se resolve bem no plano teórico, mas prescinde das obras, fala do autor como sujeito, quando na verdade o autor é mais um sistema do que um sujeito, é mais um trabalho (como modo e resultado) que negocia com as circunstâncias de um sistema, do que uma subjetividade que se expressa de maneira pessoal. Isso, o autor-sujeito, o artista pessoal, é uma abstração. Claro que essa abstração se tornou uma norma, se naturalizou no ideário do cinema moderno e virou uma commodity no mercado. Se tornou questão essencial, de fundamento, e abandonou rapidamente a ideia de uma “política” (o conceito de política dos autores). A política dos autores não era mera legitimação do gênio, ainda que a atitude dos críticos fosse de louvação (isso deve ser contextualizado porque era a necessária formação de uma visão de cinema). Para legitimação canônica caberia bem uma “teoria dos autores”, uma “poética dos autores” ou a “autoria”, pura e simplesmente. Política tem a ver com discenso, atrito, relação ou embate com o poder/establishment. É colocar um termo à prescrição normativa da “máquina” do establishment cinematográfico. Por isso os críticos vão localizar os autores sobretudo em Hollywood, lugar hostil à expressão pessoal. Achava importante desassombrar esse debate. Porém, esse episódio do debate francês do autor (e de sua política) hoje me interessa menos e em 2022 eu o faria de outro modo. O livro foi escrito em 2017, quando algumas questões da autoria no ambiente contemporâneo ainda me chegavam devagar. Hoje o autor se tornou, novamente, figura central. Quem faz o filme, sobretudo quem dirige, quem imprime uma visão, tem sido há alguns anos um capítulo importante dentro das discussões sobre cinema em um momento que se entende e denuncia que a figura central e de liderança historicamente são os homens brancos. E essa verdade redimensiona o olhar para a historiografia e a produção atual (até que enfim). O diretor ou a diretora como figura central é retomada/o na demanda do empoderamento daquelas e daqueles historicamente ausentes ou coadjuvantes (ou objetos) na realização de filmes.

A experiência histórica e social de quem realiza teria legitimidade para falar sobre certos assuntos. A experiência social e subjetiva como legitimadora é, notoriamente, retomada da centralidade da direção como autoria, expressão de experiência e subjetividade do sujeito. Isso tem e teve um impacto social e tornou o Brasil o único dos países da América Latina com sua realidade pós-colonial, classista e racista, em que o debate substantivo passa pelo fato de que é preciso existir olhares erigidos sobre outras experiências, de orientações não hegemônicas, olhares e experiências marcados pela pobreza e a violência. Isso transformou substancialmente o campo das artes. Curiosamente o resto da América Latina está bem atrasado nesse debate. Mas por outro lado, do ponto de vista historiográfico, o anacronismo se impõe e muitas vezes tende  a ignorar alguns traços de complexidade. Por exemplo: seria mais útil dizer que “os negros e as mulheres estão ausentes criativamente do cinema novo e marginal, porque afinal de contas, só tínhamos homens brancos de classe média dirigindo” ou é mais interessante solicitar uma mudança de perspectiva e entender que Antonio Pitanga, ator mais importante do cinema novo, como co-autor dos filmes em que atua? Vamos a exemplos: em “A Grande Cidade” a câmera de Cacá Diegues, sempre na sua obra tão pesada, precisa negociar o ritmo de um corpo indomesticável pela câmera que é o do Antonio Pitanga. No fim, momento em que ele dança, a câmera se afasta para poder filmar seu corpo que dança e dança, pra lá e pra cá. É claro que uma pesquisa histórica sobre o trabalho de “A Grande Cidade” pode nos dizer como aquilo foi feito, como foi essa parceria, mas é notório que o cinema Diegues é melhor, mais vivo, moderno e intenso, quando sai de seus esquemas mais convencionais e repetitivos para filmar Pitanga em “A Grande Cidade” e “Ganga Zumba”. Independente se houve qualquer acordo prévio de método entre diretor e ator, o corpo de Pitanga, sua arte de ator, existe com força e impõe uma mise en scène. Aquele energia, elaboração e técnica, orienta um trabalho de câmera. Ele é a síntese da modernidade e da novidade do cinema novo, mais do que os diretores. Por isso, quem é o autor? Ou quem são os co-autores? É bonito e complexo, mas aí se torna mais fácil dizer que não precisamos mais falar de cinema novo porque foi superado pela história, porque é canônico, é parte da mentalidade hegemônica e etc. Falar isso é um desserviço, não é gesto revolucionário, é conservador. Acho importante construir outras referências, criar outra via de tradição, por exemplo, pegar o Zózimo Bubul como paradigma. Mas é importante que se diga que a presença negra está no cinema brasileiro e é determinante, o problema é a historiografia branca que se atentou pouco a isso e influenciada pela compreensão européia do autor concentrou o gênio criativo no diretor, e os problemas sistêmicos na questão da economia. E se há uma realidade concreta de hierarquia profissional (que determina uma hierarquia criativa) isso reflete nossos constrangimentos históricos e o racismo estrutural, claro. É preciso olhar para isso e isso tem sido feito, felizmente não a custo do equívoco, que se tornam cada vez mais raros. Um dia li o texto de um rapaz que fala da “ausência negra” no cinema brasileiro. Pegar a questão por aí faz barulho, ganha likes e lacra, mas não resolve porque o título é a conclusão. É preciso qualificar a presença negra. Historiografá-la e entender os níveis de complexidade e violência. Por exemplo, pegar “Um é Pouco e Dois é Bom”, de Odilon Lopez,  nas suas duas partes (não só a parte Vida Nova Por Caso, como tem sido feito), pensar o filme “Amor Maldito” de Adélia Sampaio no seu registro (dentro de um filão específico de mercado – com algum apelo erótico – dos anos 80) e nas suas escolhas (duas protagonistas brancas), conhecer os filmes dirigidos por Agenor Alves na Boca do lixo ou a obra de Valter Filé no vídeo dos anos 90. Enfim, tem muita gente boa e de primeiríssima fazendo isso porque há tempos já sentiu essa necessidade de qualificar as demandas do presente desde uma prospecção histórica. Tem muita gente, mas cito aqui os que me vem à cabela imediatamente. A plataforma Indeterminações com a  Lorenna Rocha e o Gabriel Araújo, Mariana Queen escrevendo sobre Xica da Silva, o trabalho de Juliano Gomes e Bernardo Oliveira, o curso Ebó Ejé que o Ewerton Belico ministrou e que me parece reorientar muito profundamente, e não falo isso de graça, a modernidade do cinema brasileiro desde as relações do cinema com as religiões de matriz africana. Espero que daí saia um livro do Ewerton, porque muda muita coisa.Ou seja: todos eles perseguem esses objetos-sujeitos que são os filmes. É esse rigor material de proposição e método que tem radicalidade política. Enfim, voltando à autoria e ao autor no cinema: fazer hoje um texto para O Autor no Cinema eu teria que levar em conta essas questões, mais delicadas e desafiadoras, porque exige que pensemos as instâncias criativas desde a direção, mas para além dessa função. Falar de autor hoje só serve se for para tratar das responsabilidades criativas e definitivas que ultrapassam a pessoa física do diretor. Cristina Amaral, a maior montadora brasileira, parceira dos nossos modernos radicais (Tonacci, Reichenbach, Adriano, Navarro), que foi reconhecida pelos diretores como uma parceira criativa incontornável, é uma mulher negra. Entender Antonio Pitanga (que também já dirigiu) como co-autor dos diretores do Cinema Novo ou Helena Ignez (também diretora hoje) e Maria Gladys como co-autoras dos diretores da Belair (já que a relação entre câmera e performance é o princípio da Belair), redimensiona a história sem  declarar o justiçamento anacronista do “já deu” pra essa cinematografia.

Euller Felix: Vejo um problema em parte da cinefilia brasileira (e aqui entra alguns críticos, é claro) que vivem de um saudosismo do cinema do passado e quase que uma repulsa total ao cinema que vem sendo feito hoje em dia. Você disse que defende uma “cinefilia onívora” que seria uma mistura do cinema mais autoral com os blockbusters que são lançados nas grandes salas, é isso? Poderia explicar um pouco melhor?

Francis Vogner dos Reis: Quando falo cinefilia onívora não penso nessa dicotomia autoral versus blockbuster. Entendo essas categorias, significam algumas coisas, mas não defino muito a ideia de cinefilia por ai. Penso que é comer de tudo. É gostar de cinemas muito distintos como por exemplo Rosselini e Lucio Fulci, Paula Gaitán e Kyioshi Kurosawa, Edgar Navarro e Max Ophuls, entende? E também recusar ao mesmo tempo, sei lá Os Vingadores e Albert Serra. A cinefilia é mais pródiga em idiossincrasias do que em doxas.  Mas essa questão do onívoro é uma perspectiva minha, não é um cavalo de batalha. Não acho importante pro debate hoje. Sobre essa cinefilia que só gosta do cinema do passado e acha que o que se faz hoje não presta e etc, não sei se vale muito a pena se debruçar sobre ela ou seus representantes na crítica. Nessa postura ai tá envolvido um conservadorismo de base que apela a um passado ideal e insuperável, e nos casos “mais bem informados”, uma fascinação provinciana e colonizada com o dandismo cinéfilo dos anos 1950 por meio  de uma performance retórica patética, já que muitos deles não tem background cultural e histórico e repetem platitudes que revelam ressentimento e discursos quase parnasianos somados à miséria de experiência.

Euller Felix: Como você vê a produção da crítica nos dias de hoje? Pergunto pois no seu texto no livro “O cinema brasileiro em resposta ao País” você fala que a crítica precisa sair do seu cercadinho. Poderia falar um pouco mais sobre isso?

Francis Vogner do Reis: Cara, antes de responder isso quero fazer uma distinção entre a crítica e a pesquisa acadêmica, porque pra responder vou passar por ai: a pesquisa acadêmica pode ser crítica ainda que nem sempre o seja, mas a atividade crítica não institucionalizada (a que acompanha o cinema de rotina, os festivais, os debates correntes com uma atividade mais próxima dos fatos), muitas vezes fica entre a superficialidade opinativa ou o academicismo superficial. Acho que pode se fazer crítica desde a universidade, mas é possível fazê-la também de maneira independente, de modo “laico”. Eu acredito nisso, acredito fortemente na crítica de disciplina diletante, pois hoje o mercado editorial e o jornalismo não comportam mais o profissional crítico mais ensaístico, sequer o cronista de cinema existe nos veículos comerciais. Dito isso quero dizer que a produção crítica é variada, não conheço tudo que tem sido feito. Mas não me sinto hoje na capacidade de julgar “a crítica” como um todo. Leio algumas coisas que gosto e as muitas que detesto largo antes de terminar. Sem tempo, irmão. Então, escrevi isso que você citou, a coisa do cercadinho, num contexto muito específico das análises sobre o cinema brasileiro da última década, mas não quis ser prescritivo para a atividade crítica em geral. O cercadinho que falo é o repertório da especialidade. É comum a gente ver pessoas que escrevem sobre cinema contemporâneo brasileiro e se limitam a se exercitar no  campo da sua especialidade, da sua sua pesquisa. Isso em princípio não é problema, pelo contrário: a pesquisa setorizada constitui o sistema do conhecimento. Por isso a especialidade é indispensável, pois é um mergulho com acúmulo e método em um tema ou objeto. Sem isso não se constrói absolutamente nada de sólido. Mas a especialidade no debate público mais imediato pode aparecer como uma ideia fixa e reiterativa, cansada e burocrática, mais sobre si do que sobre os fatos, uma gestão acomodada da autoridade do pensamento. É comum, né? Quando lidamos com arte, às vezes é importante confrontar o estranho, não só lidar com o familiar. As coisas novas e substantivas podem surgir na prospecção disciplinada de uma pesquisa, mas se aventurar no não conhecido na crítica é de onde podem sair as coisas mais interessantes do ponto de vista da intervenção, menos viciadas e sem medo de errar.  O que faço aqui não é defesa de um anti-eruditismo, coisa que tá na moda inclusive entre gente que se diz de esquerda, o que é uma anomalia né? E isso também não é elogio da intuição como ferramenta primordial como o fazem alguns resenhistas impressionistas. Então minha crítica à acomodação da “gestão especialista” não é anti-intelectual porque acredito que o único patrimônio mais ou menos perene e com capacidade de ser socializado é o patrimônio intelectual. O que eu acredito é em abrir mão do argumento de autoridade para se aventurar no desconhecido, naquelas coisas que ainda carecem de elaboração, que precisam mais de perguntas do que de respostas, mais de crítica do que de pregação. Isso é o princípio da imaginação intelectual. Hoje vivemos a oposição entre a gestão e a imaginação intelectual. A crítica está do lado da imaginação.

Euller Felix: E em complemento a pergunta anterior, qual é a função da crítica de cinema para você?

Francis Vogner dos Reis: Ah, Euller, sei lá cara. Essa pergunta sempre é feita, mas acho que a ideia de “função”, não de “crítica de cinema”, é que me parece o problema iminente hoje. O que seria uma função? Um papel social a cumprir. A ideia muito clara de “função”, tornou o papel da crítica demasiadamente restritivo. A demanda da utilidade se impõe como imperativo. A crítica deveria servir restritamente ao campo da ética (rebaixada) ou da obscenidade do mercado. Por um lado, vale se é útil, ou seja, se ajuda nas nossas reformas institucionais progressistas, se orienta o debate entorno de práticas políticas, sociais e da vigilância à linguagem corrente, ou, no lado do mercado, se contribui para vender jornal, revista, gerar freelas, cliques, navegar em sites, dar indicações de consumo (“dez filmes que deixam o coração quentinho na netflix”). Todo o resto seria erudição de prateleira, que não serviria a nada e nem a ninguém, só ao ego do exegeta. Nessa visão, a crítica seria pensamento abstrato, inútil, que fala com poucos. Esse conjunto de ideias e práticas é reacionário e tem a ver não necessariamente com o bolsonarismo em si, mas com o espírito de um tempo (neoliberal) que tem uma incapacidade absurda de pensamento abstrato e que vimos por meio disso fazer triunfar o bolsonarismo. É preciso então, no campo crítico, recuperar o pensamento como exercício da liberdade, como capacidade em compreender a experiência e o mundo e partir da arte (no nosso caso, o cinema) como um fato estético da produção de sentido do mundo, não como coisa apartada do mundo. O cinema nos desafia a dizer algo sobre ele através das mediações próprias da criação artística. A crítica é importante hoje porque, entre outras coisas, trabalha por distinções nesse momento em que vivemos em uma confusão cognitiva e semiológica. Por isso mesmo talvez seja uma das aventuras intelectuais mais excitantes e politicamente indispensáveis.

Euller Felix

Cientista Social, pesquisador e crítico de cinema. Um dos Organizadores dos livros "O Melhor do Terror dos anos 80" e "O Melhor do Terror dos anos 90", ambos publicados pela editora Skript.

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