O cinema de Ida Lupino

Ida Lupino é uma daquelas figuras do cinema que é necessária no repertório de toda pessoa que ama cinema. Seja na função de atriz ou como diretora e roteirista. Falaremos na coluna de hoje sobre dois de seus filmes, estes que estão mais ligados ao cinema de horror e que, de uma forma ou de outra, tem um valor histórico e estético enorme, as obras são “O mundo é o culpado” (1950) e “O mundo odeia-me” (1953).

Em “O mundo é o culpado”, Ida Lupino faz uma história que dialoga muito com alguns filmes de horror que estamos vendo sendo lançados nos dias atuais. Na história temos Ann (Mala Powers) uma mulher que sofreu um estrupo quando estava voltando do trabalho, a partir daí vemos o quanto esse acontecimento impactou a sua vida.

A cena em que Ann é perseguida pelo assediador é uma das coisas mais aterrorizantes e mais angustiantes de todo o cinema. A forma como Ida Lupina constrói é de um domínio da linguagem do cinema que falta a muitos hoje em dia. Primeiro ela nos coloca em uma situação de frente com o assediador e aí vemos a obsessão que ele tem por Ann. Na perseguição ficamos praticamente sem respirar, a forma como Lupino posiciona a câmera, como se nós, assim como Ann, observamos o assediador lá no fundo e ele está chegando cada vez mais perto. Isso junto a montagem e ao final dessa cena, onde assim que Ann é surpreendida a câmera se distancia e, mesmo que não vemos, sabemos o que aconteceu. Essa cena é uma aula de como usar as informações e o subjetivo dos espectadores para passar a ideia do que aconteceu.

Depois do acontecido mergulhamos na mente de Ann. Vemos ela se observando sendo julgada por todos a sua volta, seus pais e principalmente os desconhecidos. Por onde ela passa percebe olhares e cochichos sobre o estrupro que ela sofreu. E, por não aguentar mais, decide pegar um ônibus e simplesmente partir dali. Ann só consegue seguir em frente depois de, na tentativa de um segundo homem de assediá-la, ela o acertar com uma ferramenta, ser presa e passar por uma ajuda psiquiatra.

Entre a fuga de Ann e o segundo abuso há todo um filme que eu não comentei para não revelar mais da trama. No entanto, há mais um aspecto que eu quero comentar antes de passar para o próximo filme, que é como a vítima é julgada pela sociedade. Não só na primeira parte do filme quando Ann está passando pelo estresse do primeiro assédio, mas quando ela consegue escapar do segundo assediador. Ela foi presa por se defender e resistir contra um homem que queria atacá-la. E ainda mais, ela é acusada, julgada e defendida por três homens. Ninguém ali realmente entende o que ela está passando.

“O mundo é o culpado” é uma obra prima. Merecia ser bem mais comentado e discutido do que ele é hoje.

Décadas antes de Robert Harmon nos deixar aflitos com o seu “A Morte Pede Carona” (1986), Ida Lupino fez “O mundo odeia-me” com a mesma premissa de caroneiro assassino. Aqui temos dois amigos viajando, Roy (Edmond O’Brien) e Gilbert (Frank Lovejoy) que decidem dar uma carona para um homem que estava sem gasolina na estrada. Acontece que este homem (William Talman) é um assassino que está sendo procurado pela polícia e agora os dois são feitos de refém.

Somos reféns também dessa situação. Ficamos presos e sem poder esboçar nenhuma reação contra aqueles que querem nos fazer mal. Ficamos agoniados pelas ações do homem que dorme com um olho aberto e impede que os amigos fujam das suas mãos.

Além disso, desde o começo do filme sabemos que o assassino é cruel e mata quem estiver no seu caminho, então ficamos sempre com a sensação de que a qualquer momento haverá alguma morte ali. É um suspense interminável.

O cinema de Ida Lupino é de uma beleza e técnica incrível. Seus filmes demonstram uma técnica e domínio da linguagem do cinema que claramente influenciou diversos realizadores que vieram depois. É uma referência incontornável para todos nós.

Para ler

Deixo aqui a recomendação do texto da pesquisadora Beatriz Saldanha onde ela fala sobre “O mundo é o culpado” e sobre como o filme se insere no horror.

Texto originalmente publicado na coluna Mundo Fantástico na página do Festival Cinefantasy no dia 17 de janeiro de 2022.

Euller Felix

Cientista Social, pesquisador e crítico de cinema. Um dos Organizadores dos livros "O Melhor do Terror dos anos 80" e "O Melhor do Terror dos anos 90", ambos publicados pela editora Skript.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

%d bloggers like this: