A função social da crítica (o silêncio também é uma posição)

No texto anterior em que falo sobre listas e sobre a bell hooks eu firmo que, para mim, o crítico tem como uma de suas funções a de pesquisador. Agora, neste texto, pretendo falar um pouco sobre o que eu chamo de “função social” da crítica de cinema. E, evidentemente, a função social que uma crítica ou um crítico têm quando decide assumir para si essa função.

Quando digo que um crítico tem uma função de pesquisador logo me vêm a mente a ideia de que não há como existir pesquisa sem existir materiais para esse pesquisador. Os materiais mais importantes de pesquisa de um crítico de cinema são filmes e livros. Sendo assim, um dos acervos de maior importância que os críticos tem a sua disposição são as cinematecas. Aqui no Brasil temos uma e que foi duramente atacada durante os últimos anos, sendo inclusive abandonada de tal forma que literalmente acabou pegando fogo, fazendo assim com que muitos materiais importantes de pesquisa fossem perdidos no fogo. Felizmente parece que os tempos de agora são outros e que não corremos mais o mesmo risco de algo semelhante acontecer.

No entanto, quando a nossa cinemateca estava nesta situação algo me chamou a atenção: o silencio de muitos que se dizem críticos. Não que de alguns eu esperasse muito. Mas, de todos aqueles que dizem amar e/ou trabalham com essa arte, destes eu esperava no mínimo uma nota sobre o acontecimento e cobranças para que atrocidades como essas não voltassem a acontecer. Ao contrário, parece que alguns, em uma tentativa de não se comprometer com o seu público decidiu se manter calado. Afinal, poderiam entender essa sua manifestação sua em defesa da Cinemateca como uma expressão política de seu pensamento. Principalmente contra o governo que até então estava ali no comando do país.

Na verdade, essa falta de posição – e aqui eu estou me baseando nas ideias de Paulo Freire e de Florestan Fernandes – já é uma tomada de posição. Ao não se posicionarem contra os desmantelamentos do setor cultural no país, ao não se posicionarem contra o incêndio que aconteceu na Cinemateca, e apontarem os devidos culpados desta tragédia, estavam sendo coniventes com a politica cultural que estava em curso no país.

Para mim, essa “não-posição” tomada por alguns é algo que vai contra tudo que eu defendo que uma pessoa que se diz crítico de cinema deveria fazer. A preservação das obras é uma condição básica do exercício crítico. Não há cinema sem preservação do cinema, não há critico de cinema sem o cinema.

E eu acho interessante que quando questionei publicamente os críticos que estavam apáticos com a situação em que vivemos, recebi respostas do tipo: “agora o crítico de cinema precisa se posicionar?” ou “então um crítico não pode ser neutro?” Minha resposta vai ser curta: não, não pode ser neutro, e sim, ele tem que se posicionar. Por respeito a sua função, e principalmente, por respeito a arte que ele diz tanto amar.

Quando leio um texto de algum crítico que passou esses últimos anos em silêncio com as atrocidades cometidas ao longo da pandemia, das politicas culturais e das falas, me parece textos cheios de hipocrisia que não passam de letras e palavras mortas. Não servem de nada, não representam nada, só estão ali para serem lidas e não causam impacto nenhum em quem lê e muito menos na arte em que se propõe a refletir.

E aqui eu não estou defendendo nem que todos os críticos saiam por ai fazendo textos relacionando as obras com as questões sociais e politicas do nosso dia a dia – na verdade, isso seria ótimo, mas acredito que para alguns seja pedir demais -, só esperava que pelo menos menções em redes sociais, que normalmente são o campo onde a maioria dos que se autoproclamam crítico de cinema estão. É só isso. Tem muito crítico de cinema que possui milhares e milhares de seguidores, no entanto, passaram esses últimos anos apenas postando listas e memes com filmes. Como se nada tivesse acontecendo no Brasil, como se a nossa cultura não estivesse sendo destruída.

Talvez minha postura seja essa por ter como referência críticos e pensadores que se preocuparam não só com a arte, mas também com a sociedade ao seu redor e se propuseram a refletir como as questões mais diversas impactam na realização das obras, tais como Paulo Emilio Sales Gomes, Jean-Claude Bernardet, Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, bell hooks. Além de críticos e críticas de cinema que hoje estão na ativa e fazendo exatamente isso: entendendo e pensando a relação do cinema com o mundo em que vivemos, como a Carol Almeida, o José Geraldo Couto, a Lorenna Rocha, o Juliano Gomes, o Bruno Carmelo entre outros.

Enfim. O texto é meio que um desabafo sobre a postura de alguns “colegas” (entre aspas mesmo, alguns eu nem conheço, nem converso, e para ser sincero, nem quero), durante os últimos anos. Ser crítico de cinema, para mim, é refletir sobre os filmes, refletir sobre a linguagem, a história do cinema e tudo isso. Mas também é sobre entender a relação entre arte e vida, entre arte e sociedade. Não há como pensar no fazer, no refletir e no assistir aos filmes sem pensar no mundo.

Euller Felix

Cientista Social, pesquisador e crítico de cinema. Um dos Organizadores dos livros "O Melhor do Terror dos anos 80" e "O Melhor do Terror dos anos 90", ambos publicados pela editora Skript.

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