Memória

Os filmes de Apichatpong Weerasethakul são complexos e conseguem atiçar a cinefilia e a crítica de uma forma que outro diretor nenhum consegue. Para aqueles que já são apaixonados pelo cinema os filmes do cineasta são sempre uma boa pedida para qualquer momento da vida. Para aqueles que ainda não se depararam com uma de suas obras, ainda não conhecem uma das figuras mais importantes do cinema em atividade hoje. E aqui eu estou me referindo a imensidão que cada plano, som, imagem, ou cena que Apichatpong projeta na tela. Não há um único segundo perdido em sua obra.

Coloco o diretor no patamar de uma das figuras mais importantes do cinema de hoje por algo que podemos ver se repetir em “Memória”, seu mais novo filme, ele não tem pressa, deixa as imagens falaram, sentirem e passarem, da forma em que as cenas vão se transpassando de forma natural, mesmo que o assunto flerte com um certo realismo. Essa “não pressa” de Apichatpong é talvez o elemento mais fascinante da sua obra. Sinto que ali nada mais é importante, somente vivenciar aquele momento seu e com aquela obra. Talvez a formulação que o Eduardo Valente deu dá crítica de cinema, de tirar o filme para dançar, caiba muito bem aqui. Me parece que com esse – e outros – filme do diretor não há literalmente nada que deva tirar você daquela absorção que o filme te coloca logo de inicio. Temos apenas que aceitarmos ser guiados pelas imagens para onde quer que elas estejam indo.

A história que vemos é simples e ao mesmo tempo complexa: acompanhamos a saga de uma mulher chamada Jéssica (Tilda Swinton) que acorda em uma madrugada com um barulho estranho e que não sabe identificar de onde vem. Depois de descobrir que não há uma explicação lógica – não há nada acontecendo ao seu redor para que ela esteja escutando aquele barulho – ela entra em uma jornada para tentar entender o que é aquilo que ela está ouvindo.

Duas coisas que eu gostaria de destacar sobre esse ponto do som: não parece ser um som que vem somente da cabeça de Jessica, e Apichatpong parece querer nos mostrar isso. Primeiro, logo após ouvirmos pela primeira vez os alarmes dos carros começam a disparar. Um após o outro – talvez como um efeito de um alarme ir disparando o outro – mas algo começou isso tudo, e me parece ter sido o som que Jessica escuta. Os animais, principalmente as aves, parecem também reagir a esse som, não ficam paradas quando escutamos o barulho, elas voam. E; a interpretação e o mexer do corpo que Tilda Swinton faz é um absurdo. Quando vemos ela tentando explicar o que ela está escutando e, ao mesmo tempo, são reproduzidos alguns sons que possam ser parecidos com o que ela escuta, o seu corpo se retrai, se movimenta sempre. Não consegue ficar inerte com aquele barulho, aquilo a assusta. Aquele barulho incomoda. O seu corpo reage a ele.

Em outros momentos, além do disparo de alarmes e ações de animais, parece que outras pessoas escutam um barulho – talvez não aquele, mas escutam alguma coisa. As pessoas parecem estar procurando de onde está vindo um sim, de que lugar está o objeto que emitiu alguma coisa que chegou aos seus ouvidos. Há uma procura das outras pessoas do filme por alguma coisa.

Vemos a personagem perdida nas cenas, sem saber de onde está vindo o som, sem saber o que ele significa. Ela apenas escuta e nós, assim como ela, não conseguimos entender o que está acontecendo e nem o motivo de ela estar escutando aquilo.

Apichatpong, Tilda, o som, as personagens que vão aparecendo e sumindo, tudo parece fazer parte de uma dança em que a explicação é a ultima coisa em que devemos pensar. Só somos carregados por uma quantidade belíssima e continua de imagens. Talvez o melhor a se fazer é só se desprender e entrar no jogo. Foi o que fiz.

Euller Felix

Cientista Social, pesquisador e crítico de cinema. Um dos Organizadores dos livros "O Melhor do Terror dos anos 80" e "O Melhor do Terror dos anos 90", ambos publicados pela editora Skript.

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