Horror corporal e crescimento: o cinema de Julia Ducournau

Já escrevi nesta coluna sobre os dois longa-metragens da Julia Ducournau e decidi agora falar do seu primeiro curta, “Júnior” que está disponível na plataforma de streaming da MUBI Brasil .

Assistir os primeiros trabalhos de cineastas depois de ter tido um primeiro contato com a obra madura é um exercício muito interessante, pelo menos para mim. Você olha naquele primeiro trabalho ideias e conceitos que passaram a ter uma visão mais elaborada e mais elegante. Entendemos e vemos o início de ideias que deram origem ao amadurecimento e uma obra mais coerente e com muito mais segurança.

Em “Júnior” vemos a atriz Garance Marillier, que mais tarde trabalhou com Ducournau em “Raw” e “Titane”. Aqui ela é uma garota cheia de espinhas e que vive cercada por seus amigos, todos meninos. Depois de ter uma infecção no estômago, o corpo e a mente dela começam a passar por algumas mudanças e isso impacta não só como ela observa o mundo, mas também como o mundo enxerga ela enquanto pessoa.

Ducournau já neste seu primeiro trabalho utiliza o horror corporal para demonstrar e discutir o crescimento de suas personagens. Júnior/Justine passa por uma “descamação” para basicamente se tornar outra pessoa. Ela literalmente passa boa parte dos 20 minutos de duração do curta descascando a própria pele e se tornando uma outra pessoa. Quando um professor que antes havia expulsado ela de sua sala por ter sido “malcriada” e tumultuado sua aula, vê a nova Justine/Júnior não a reconhece, pergunta se é uma aluna nova naquela sala.

E essa mudança não é só física, sua mente e forma de ser não é mais a mesma – por mais que ela tente. Quando ela está andando com seu grupo de amigos e presencia um dos meninos passando a mão na bunda de uma garota ela logo se sente também atacada e desfere xingamentos e golpes no garoto. Gerando aí uma espécie de “pertencimento” dentro do grupo das meninas. Mesmo que ela não mude seu ciclo de amizades e continue andando com os garotos, o ato dela de se rebelar contra um ação machista, faz ela entender quem ela é enquanto pessoa dentro daquele pequeno mundo que ela vive. Aliás, graças a essas mudanças parece que a personagem começa a perceber que o mundo é muito maior do que aquele ciclo social a qual ela pertence.

Não é surpresa que tudo isso caiba em um curta, e muito menos que a Julia Ducournau consiga nos entregar tanto em tão pouco tempo. “Junior” é um trabalho que demonstra o quanto o trabalho dessa cineasta é valioso para o cinema e, mais especificamente, para o cinema de horror.

“Jùnior”, “Raw” e “Titane” exploram a sexualidade, o crescimento, o amadurecimento e sem soltar a mão do horror, com suas cenas grotescas e agoniantes. Só o tempo dirá quais outras ótimas histórias essa promissora diretora irá nos contar.

Texto originalmente publicado na coluna Mundo Fantástico na página do Festival Cinefantasy no dia 04 de fevereiro de 2022.

Euller Felix

Cientista Social, pesquisador e crítico de cinema. Um dos Organizadores dos livros "O Melhor do Terror dos anos 80" e "O Melhor do Terror dos anos 90", ambos publicados pela editora Skript.

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