Estava pensando no que assistir e me apareceu um vídeo do Carlos Reichenbach citando alguns filmes brasileiros que ele considerava incríveis. Em um filme ele deu uma ênfase tão grande nas palavras que eu pensei: vou ter que rever. O filme em questão é dirigido por José Mojica Marins, Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver.
Começando após o fim de À Meia-Noite Levarei Sua Alma, temos a continuação da história de Zé do Caixão em busca do seu objetivo: gerar um filho. Como podemos lembrar do filme anterior, para o personagem é assim que ele vai conseguir prolongar e continuar a sua existência.
Absolvido dos crimes que cometeu, Zé volta para a cidade e decide sequestrar algumas mulheres para que consiga atingir o seu objetivo. Algo que saltou aos meus olhos nessa revisão foi que Zé faz uma espécie de “reality show” com as mulheres que ele sequestra. Há provas, físicas e mentais, para saber quem realmente seria a merecedora. O prêmio desse reality? Gerar um filho superior. Zé do Caixão faz tudo isso pois ele se considerando um humano superior acredita que somente será possível gerar uma criança perfeita, se também houver uma mulher superior.
Quando faz essa “seleção” (leia-se sequestro) dessas mulheres para o seu “reality”, ele busca nelas um indicativo de superioridade, e para ele existe um que é obvio: a questão da crença em alguma divindade. Afinal, uma pessoa que estaria liberta de todas as crenças imateriais humanas, acreditando somente na materialidade, seria uma pessoa superior ao restante da humanidade. E assim ele conduz os desafios que acontecem dentro de sua casa. A morte é o castigo para aquelas que não conseguem atingir aquilo que Zé do Caixão almeja.
É interessante o que o tempo e os acontecimentos do mundo atual fazem quando você vai rever uma obra. Mesmo que não seja algo extenso no filme (o pequeno reality de Zé acontece e acaba rapidamente), esses acontecimentos retratados em uma obra de 1967, fazem uma correlação interessante com um certo sadismo dos espectadores e de como observamos os reality shows de hoje.
Zé do Caixão diz não possuir nenhuma crença imaterial, mas ele possui uma crença: a da santidade das crianças. Para ele é a única coisa que importa. E é aí que começa a sua derrocada neste filme. Quando ele assassina as mulheres que “não passaram” nas suas provas, ele não sabia mas uma estava grávida. Portanto, ele comete o maior dos crimes que alguém poderia cometer, matar uma mãe e uma criança em gestação. Esse pensamento dele, do quanto a vida da criança é importante, é colocada em imagens logo na sua volta a cidade, quando ele salva uma criança de um atropelamento. Por isso, é tão claro e tão palpável esse sentimento de um personagem tão sádico em relação a morte de uma criança que só acontece por conta de uma ação sua.
Após a compreensão de que fez algo terrível, o personagem visita até o próprio inferno em seus delírios e ai vemos a sua trajetória até lá se iniciando. E culmina em um final de tirar o folego e que retrata muito bem a época em que o filme foi lançado – as palavras que Zé do Caixão diz enquanto afundava tiveram que ser mudadas por conta da censura. Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver é uma obra atemporal que representa o seu tempo como poucas. Não sei muito bem se há sentido nisso, mas é o que é.
Uma última coisa que eu preciso destacar aqui nessa revisão, já que fiquei um bom tempo pensando nisso enquanto assistia, é o trabalho de voz de Mojica com o personagem de Zé do Caixão. Qualquer pessoa que escute qualquer coisa vinda deste filme (e dos outros em que o personagem está presente) consegue sentir a força inumana que este humano possui somente por ouvir a sua voz. A voz de Zé do Caixão é uma presença sobrenatural no filme. É algo que se escuta e no mesmo instante se sente hipnotizado.
À Meia-Noite Levarei Sua Alma e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver são duas das melhores obras do cinema da década de 1960. Me corrigindo: são duas das melhores obras do cinema na história, em qualquer década.
Essa série de textos sobre a obra de Mojica começou com Finis Hominis e vai continuar, sem prazo ou pressa.