First Cow

Considero sempre interessante as narrativas que nos mostram o final logo na cena de entrada. Adoro essa sensação de um destino inevitável para aquelas personagens que vamos acompanhar por algumas horas. “First Cow” começa com uma cena que representa o final do filme. Dois esqueletos lado a lado que, com frase que abre o filme, deduzimos que morreram da mesma forma em que viveram, como grandes amigos.

Se eu não me engano, foi estudando Alfred Hitchcock que eu me deparei com aquela que, para mim, é a melhor definição de suspense: se você está assistindo uma cena com duas pessoas conversando e do nada uma bomba explode você tem o susto, que é uma sensação valida de se causar no público. Se, por outro lado, você filma primeiro a bomba embaixo da mesa e depois filma as duas pessoas conversando, ficamos ansiosos sem saber qual vai ser o momento em que a bomba explodirá. Aquelas personagens vão perceber a bomba? Elas irão sair antes da bomba explodir? Essa e outras dúvidas surgem a nossa cabeça. “First Cow” me deu exatamente esse sentimento quando nos mostrou os dois esqueletos, “como eles morreram?” ” O que aconteceu para ficarem juntos?” “Quais foram as circunstâncias da morte de ambos?” Essas foram as principais perguntas que rodearam a minha cabeça enquanto assistia ao filme.

Dirigido por Kelly Reichardt o filme conta a história de dois amigos, Cookie (John Magaro) e King Lu (Orion Lee) que se encontraram no meio de uma mata. Cookie estava de cozinheiro com um grupo e ajudou King Lu a fugir com vida de um grupo de russos que estavam o perseguindo por ter matado um homem. Tempos depois, os dois se encontram em um bar e começam ali uma amizade. Logo depois se tornam também parceiros de negócios quando Cookie começa a fazer um doce para vender na cidade. O problema é que para a confecção desse doce e para que ele tenha o gosto tão bom ao ponto de fazer as pessoas entrarem em uma fila para comprarem é necessário leite. E na cidade inteira só existe uma vaca, que é de propriedade do comerciante chefe (Toby Jones). Os dois então começam a roubar o leite durante a noite.

Nessa dos dois roubarem o leite é o que mexe com a nossa ansiedade, que teve início com a cena que foi construída lá na abertura do filme. Em qual momento que o plano deles irá ruir? Quando eles serão descobertos? Todo esse suspense construído por Kelly Reichardt em sua narrativa é mais um dos motivos que fazem do filme o sucesso de crítica que ele é. Aliás, esse hibridismo de gênero, a forma como toda a história transita em diferentes formas e linguagens relativas a cada gênero específico é o que deixa o filme ainda mais rico em sua qualidade técnica e de narrativa. Facilmente o filme passa de western para drama e depois para o suspense. Tudo isso sem ser perder, o que demonstra um exímio trabalho de direção.

Vale também o destaque para a atuação de John Magaro e Orion Le. O filme não tem outro núcleo de personagens a não ser os dois. Tudo que vemos é do ponto de vista e de como a relação dos dois amigos é construída. Mesmo assim em nenhum momento perdemos o interesse, sempre queremos saber qual é o próximo passo da dupla, ou se eles irão ou não escapar ilesos de tudo que fizeram. Outro ponto interessante é a forma como Reichardt decidiu filmar essa história. A maioria das cenas são filmadas em planos estáticos e com poucos ou nenhum movimento. Vemos apenas as personagens interagindo entre si e com o cenário. Quando não estão juntos a diretora usa da profundidade de campo para interligar de alguma forma os dois amigos.

A espera valeu a pena. A todos que, como eu, estavam aguardando ansiosamente para poder enfim assistir ao filme de Kelly Reichardt foi finalmente saciada. Com muito gosto, pois essa é com certeza uma daquelas obras que marcam época.

Euller Felix

Cientista Social, pesquisador e crítico de cinema. Um dos Organizadores dos livros "O Melhor do Terror dos anos 80" e "O Melhor do Terror dos anos 90", ambos publicados pela editora Skript.

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