O diálogo é o principal objetivo dessa série de entrevistas com críticos. Observar como pensam os críticos de cinema de várias partes do país sobre o mesmo assunto, ou questões específicas, acho que pode ser um exercício interessante.
Pensando em tentar dialogar com críticos de outros estados do Brasil, converso hoje com Arthur Gadelha, atual presidente da Associação Cearense de Críticos de Cinema (ACECCINE).
Além de textos para o site da Associação que preside, Arthur ainda escreve no próprio site, o Ensaio Crítico.
Entrevista
Euller Felix: Você é o atual presidente da Associação Cearense de Críticos de Cinema, ela foi criada em 2016, certo? Você pode falar um pouco sobre o contexto da criação da entidade e a importância dela para a crítica e os críticos cearenses?
Arthur Gadelha: A fundação da Aceccine acontece num contexto provocante de reorganização da crítica de cinema no Brasil. Apesar de agremiações da crítica já existirem no século passado, com a ACCPA (1962), no Pará, e ACCRJ (1984), no Rio de Janeiro, é no século XXI que esse processo de legitimação se intensifica pelo Brasil. Além da ACCIRS (2008), no Rio Grande do Sul, a formação da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, em 2011, impulsionou a criação de outras entidades pelo Brasil, como é o caso da Aceccine (2016), no Ceará, ACCiRN (2017), no Rio Grande do Norte, e o Elviras (2017), coletivo de mulheres que exercem críticas de cinema no Brasil.
Em 2016, 15 críticos de cinema cearenses deram a iniciativa para propor essa organização crítica no Estado. Diego Benevides e Daniel Herculano, que já eram membros da Abraccine, guiaram as duas primeiras e importantes gestões da entidade. Entre 2016 e 2020, integramos mais de 10 júris da crítica em festivais de cinema, lançamos uma publicação própria, a Revista Movimento, além de uma pesquisa crucial para entender o cinema cearense contemporâneo: uma lista com os 20 filmes cearenses essenciais da década. Então a importância de uma entidade como a Aceccine é fazer com que a crítica de cinema seja reconhecida como uma prática profissional ao ponto de ser “representada”, e fazer com que ela circule nos meios de discussões valorizando o cinema cearense e nacional, e todas as expressões artísticas relevantes do cinema contemporâneo mundial.
Euller Felix: Ser presidente de uma Associação de Críticos é uma responsabilidade enorme, conta um pouco pra gente de como está sendo sua experiência.
Arthur Gadelha: Em 2018, eu fui convidado pela gestão da Aceccine para compor a próxima chapa como “segundo-secretário”. Foi nessa experiência prévia que redescobri o trabalho de uma gestão como uma prática tanto técnica quanto intelectual. A gestão é responsável por guiar a entidade em suas iniciativas e práticas, e é uma responsabilidade imensa. A chapa em que pertenço assumiu em 2020 com várias ideias de dar prosseguimento ao pensamento crítico, mas acabamos impedidos pela pandemia… Ano passado encontramos uma forma de propor discussões com a Mostra Aceccine, que aconteceu de forma on-line no site da entidade e que apresentou alguns curtas-metragens vencedores do nosso prêmio de “Melhores Filmes do Ano” em edições anteriores. É um tipo de experiência interessante para se propor ao reunir a própria obra audiovisual com as reflexões críticas que o cercam. Além disso, seguimos integrando júris de festivais de cinema que aconteceram de forma online no Ceará, como o For Rainbow, Noia, Curta Canoa, Cinefestival Russas, Mostra de Iguatu… E vamos seguindo!
Euller Felix: Para você, qual é a função da crítica de cinema?
Arthur Gadelha: Essa é uma pergunta que está sempre sem resposta concreta, mas é bom nos certificarmos de algumas certezas antes da subjetividade: a crítica é uma manifestação artística tanto quanto as obras que reflete. A crítica não é um serviço protocolar, não é um mero “guia de consumo”. Então eu diria, nesse contexto, que a função da crítica é a mesma da arte: te fazer experimentar sensações, te fazer refletir constantemente sobre essa mesma pergunta, talvez até fazer com que sua vida se encaixe de alguma forma.
Então nesse sentido, também acho que a crítica não combina com a exatidão. “Cinema não é de exatas e nem exato”, uma vez me disse um professor da faculdade. Além de rotulado pelo seu próprio tempo, o olhar crítico sempre é profundamente pessoal porque ele fala a partir de um lugar, de uma vivência e experiência particulares. Sinto que é preciso admitir isso, sabe?
Eu, como espectador, preciso assumir também que o texto que estou lendo não tem qualquer dever de me proporcionar satisfação. Eu naturalmente vou escolher o que aceitar de um pensamento a partir do que eu penso, e a crítica tem esse gatilho essencial de me fazer pensar em que ponto essa “verdade” existe. Se fugir das certezas, a crítica faz mais sentido. Mas fugir das certezas é, também, perceber que não é justo traçar uma só régua para todos os filmes.
Então é preciso estar sempre em crise. Ou seja, um manifesto “contra a verdade” não significa fazer do crítico uma figura passiva que propõe apenas sugestões sobre o próprio pensamento. A “certeza” pessoal é um elemento indiscutível para que a crítica provoque calorosas discussões sobre cinema, mas essa certeza pode cristalizar e virar arrogância, então a prática perde discussão. É tênue, sensível.
A crítica, assim como a realização, não é uma prática redonda, elas convergem na dúvida também. Sinto que elas são mais potentes quando te deixam perguntas, quando te incomodam. Amo ler uma crítica e não ter uma percepção óbvia se ela é positiva ou negativa. Gosto de pensar a crítica como uma ferramenta para pensar os filmes em seus tempos, localizá-los na história, projetá-los nas próprias percepções respeitando a sinceridade e identidade dessas próprias obras e de si mesmo.
Se eu penso uma coisa e a crítica pensa outra, ela quebra essa dicotomia quando se afasta de uma uniformidade (que é quando estou lendo algo que não me faz pensar nada para além do que pensei). Se um autor diz que interpretou um aspecto da obra de uma forma, e eu discordo da maneira como o autor chegou nesse raciocínio, só esse fato é um estímulo para que eu desenvolva o porquê de eu sentir a mesma coisa de forma diferente. A crítica força que os pensamentos sejam colocados para fora e, nesse jogo, eu geralmente descubro novas coisas. E já não importa se essa “nova coisa” estava no texto ou em mim, mas ela só passou a existir porque eu conversei com a crítica.