Se há algo que eu sempre penso quando estou fazendo estas entrevistas é que as faço com uma razão muito pessoal, de pensar e discutir a crítica de cinema. E principalmente, dialogar com pessoas que respeito e que fizeram parte do meu repertório de estudo durante a minha vida cinéfila.
Hoje converso com Luiz Soares Júnior, que quem estuda cinema e crítica aqui no Brasil com certeza já conhece. Ele escreveu em diversos blogs, sites e revistas de cinema que são referencia para todos que pensam o cinema no Brasil, têm textos na maioria dos catálogos que são publicados aqui. Além de trazer para o público brasileiro diversos textos de fora com suas traduções no blog Dicionários de Cinema. Você consegue também encontrar textos dele no À Pala de Walsh , na Revista Cinética, e em diversos catálogos que eu reuni aqui.
Falta palavras para descrever a importância do Luiz para o cinema e para crítica, sendo assim, fiquem com a entrevista.
ENTREVISTA
Euller Felix: Você é uma pessoa que produz com qualidade reflexões sobre cinema faz muito tempo e por isso é uma referência para muitos críticos que vem surgindo ao longo dos anos. Poderia nos dizer um pouco sobre sua história e trajetória na crítica?
Luiz Soares Júnior: Comecei com blogs, né, primeiro O anjo exterminador e depois Cinemacomcana; cheguei a ter blogs sobre judaísmo ( Ruah vai me salvar) e ópera; eu sempre tive tara sistemática em escrever, acompanhada de uma dinâmica do pensar que teve na filosofia ( sou filósofo heideggeriano, se é que isso quer dizer alguma coisa ainda) e na literatura os seus arcanos, e no blog eu vi a chance de postar todos os delírios ( com Método, embora) que eu cultivava na minha cabeça sem que ninguém viesse, geralmente armado com os gládios da moral, me castrar; venho de um meio inculto, tosco- o subúrbio de Recife, que embora diste apenas 20 minutos do centro da cidade já é subúrbio pesado mesmo, porque ao contrário do Rio, em que os subúrbios se distanciam mais de uma hora da “cidade”, Recife é um ovo, e o subúrbio é colado na universidade; sempre muito introspectivo, tímido mesmo, a maneira que eu tinha de me distanciar daquele universo sufocante de pobreza, em que a partir dos anos 90 meus vizinhos começaram a roubar para sobreviver e foram sistematicamente e implacavelmente assassinados era a literatura e o cinema, sempre; foi graças ao meu trabalho no blog que o Francis ( Vogner dos Reis, pessoa a quem admiro muito, como ser humano e cabeça) me convidou para escrever na sua finada revista virtual Cine imperfeito, um texto sobre Anjos do arrabalde do Carlão; e logo depois o Duda Valente me chamou para inaugurar uma coluna na Cinética em que falasse de filmes raros ou clássicos a que, à época, só tínhamos acesso através do download ( ainda não havia o streaming), o Emulando. Mas enfim,tudo na minha vida começou com a literatura; foi ela que me permitiu acessar o mundo do fantasma e da mediação, que depois viriam a ser tools necessários na produção crítica, que se a princípio visa sobretudo a transmitir conhecimento, mas para mim também tem um sentido terapêutico de tratar nossos fantasmas, como todo trabalho de escritura; sem querer me comparar é claro, mas outro dia vi o Bial perguntando a Paloma Rocha de onde vinha a genialidade de Gláuber, se é que uma pergunta dessa tem sentido, e ela disse que mesmo morando em cidade sem cinema, ele lia muita literatura; comigo foi semelhante a coisa: vim da literatura ( ainda hoje leio muita poesia e ensaio), e se há alguma virtude na minha escrita ela vem do exemplo da experiência literária, além da força nietzschiana e paulina de haurir força da fraqueza para escapar das garras de um meio muito degradado socialmente ( o que faz de mim uma talvez espúria exceção em geral da crítica, que vem majoritariamente da classe média alta).
Euller Felix: Você tem se empenhado em fazer algumas observações sobre filmes tanto no letterboxd quanto nas suas próprias redes sociais, como você vê esse movimento de mudança do local onde há uma reflexão sobre filmes? Antes jornais, revistas eletrônicas e etc. e hoje nessas plataformas?
Luiz Soares Júnior: Olha, esse movimento é para mim fatal, porque tudo na vida e cultura humanas tem uma situação epocal, uma destinação bem situada no horizonte de uma época, de um destino ( para retomar meu jargão heideggeriano); hoje, ninguém aguenta mais assistir às coisas passivamente, como na minha infância em que a gente só tinha novela para ver e rádio fm pra pegar com bombril; era tudo muito precário, mas hoje as condições de desenvolvimento tecnológico, de mídias criaram um novo homem, que não tem mais saco pra ficar observando passivamente a horrível TV aberta que produzimos, por exemplo, e muito menos com o entulho da publicidade abominável; quando troquei de plano de internet, perguntaram se eu queria pacote de TV a cabo, e eu disse não, porque não vou ficar vendo coisa diante da TV sem poder interferir, feito um dois de paus anencéfalo; gosto de fazer minha programação própria no computador, ao mesmo tempo em que escrevo e vejo uma exposição de Bacon em Londres, por exemplo; é algo destinal, epocal, que independe da cabeça da nossa juventude; não é que seja algo trágico, inelutável ( embora Heidegger tenha estudado a tragédia moderna, com Hölderlin), mas se trata da imposição de uma época, de uma sensibilidade e de um Logos que não mais suportam o lixo numinoso da televisão dos 80, e preferem fazer seu próprio lixo/luxo numinoso, no youtube; esse processo teve como ponto de arremate nas redes sociais, o letterboxed ( a que eu cheguei tarde demais talvez, mas enfim cheguei,e estou muito satisfeito) porque são mais porosas à participação; se eu escrevia um texto foda no blog, as pessoas em geral ficavam sem nada pra dizer/completar o texto, mas como não tinha a opção curtir, eu não fazia ideia de se era lido ou o que; hoje, é tudo muito mais aberto à inervação do público, à opinião e aos pontos de contato da nossa bolha, pelo menos; falam muito pejorativamente da bolha, mas estou muito bem dentro da minha, quando tudo o mais lá fora é uma lixeira horrorosa.
Euller Felix: Meio que um complemento da pergunta anterior, como você vê a produção de crítica de cinema nos dias de hoje?
Luiz Soares Júnior: Vejo a crítica de hoje como um espaço absolutamente permeável à informação, e o tesão dos meninos vem dessa abertura; a tecnologia, que é antes de tudo uma questão ontológica de epocalidade, liberou a juventude que começa a escrever hoje de todos os entraves que eu tinha na minha adolescência ( como disse, só tínhamos TV e rádio); a pandemia, então, liberou o ser para esta coisa extraordinária, multimidiática que é a live, com todo tipo de intervenção provável para alargar o território da investigação hermenêutica do cinema, live esta que foi um avanço civilizacional de que não mais poderemos viver sem; a possibilidade à disposição deles é uma coisa espantosa de infinita, miscigenada ( para mim sintoma eminente de civilização), hermeneuticamente fecunda abertura à alteridade e seus dons; ao mesmo tempo, algo me preocupa: será que todos tem a necessária formação para suportar o fardo ( dom, graça, mas que dependendo da destinação e das pessoas pode vir a ser algo de muito negativo, um peso morto) desta destinação genealógica “possível” que os meios tecnológicos põem à nossa faminta disposição? Acho que a maioria não; um sintoma disto: as pessoas hoje continuam a chamar um filme dos anos 30 de filme antigo, quando os filmes dos 30 que chegaram até nós são justamente o contrário de filmes antigos, que permaneceram lá: You only live once é um filme clássico, que continua a irradiar possibilidades de interpretação, e portanto é um filme presente, presença ( parousia, para dizer como os gregos que depois os cristãos comeram); será que entenderam realmente a lição de Kane, filme cultuado mas talvez, pelo embasbacamento e fascinação que tornam a todos cegos quando diante de uma obra maior? A lição de Kane: um filme que é um bric à brac de tudo o que se fizera no cinema até então, dos expressionistas a Griffith e Porter e Feuillade, do kammerspiel ao documentário inglês, sintetizado na palavra fetiche da infância perdida, Rosebud; para efetivar tal prodígio, quantas horas de filmes Welles não reviu? Sabemos que centenas…as pessoas de hoje tem preconceito com classicismo porque equivocadamente o confundem com cinema velho; eu vejo pelo menos um filme todo dia, e alterno entre clássicos, modernos ( final dos 40 até os 60) e contemporâneos; tudo parta mim é fonte contínua de fascínio e de conhecimento, porque sem falsa modéstia fui muito bem formado pelos clássicos; mas é uma coisa genealógica, passado, presente e futuro: ir até o passado é o salto em altura para alcançar o futuro; não é ficar lá, mas a tomada de distância para a frente…isso é indispensável, essa formação, e creio que a maioria não se formou o suficiente para estar à altura das potências hermenêuticas que o digital nos trouxe; precisam ver muita carta branca de Costa e Gray ainda para se safarem melhor. Claro, há revistas de exceção, como a Foco no Brasil e a Lumière franco-espanhola; mas a esquizofrenia do cinema, que é industrial e artístico, ainda “perde” muita gente, em matéria de valores e de escritura. Se não há uma formação sólida, não há como não se perder, diante do gigantismo de dados, de mídias, de mediações em jogo, e é um tanto o que vejo nos textos que leio.
Euller Felix: Você fez diversas traduções de textos de críticos importantes, tem algum texto ou livro que te influenciou bastante no modo de pensar e escrever sobre cinema?
Luiz Soares Júnior: Ah, dezenas…do Daney sobre Enfant secret e A cor da romã e Stalker a Sobre uma arte ignorada do Mourlet, os textos do Lourcelles sobre Freda e Jacques Tourneur ( a maioria desses eu traduzi no Dicionários de cinema), da Morte de um conceito do Labarthe ao de Narboni sobre Fortini cani dos Straub, Nicole Brenez sobre os fioretti de Rossellini, os textos sisudos e irônicos de Biette ( por exemplo: sobre Fassbinder), o caudaloso texto de Thoret sobre Psicose ( a refilmagem de Van sant) e o livro sobre Dario argento, sublime…, tudo do Jean André Fieschi, que é dos meus favoritos de sempre…muita coisa; de livros, os Dicionários de cinema do Lourcelles e A rampa do Serge Daney, mas também do Dominique Païni ( Cinema, uma arte moderna), ou os do Luc Moullet, Narboni e Sylvie Pierre; basicamente crítica francesa, que foi o que me formou realmente, embora Jairo Ferreira , Rosembaum e o Bordwell do belo livro sobre Dreyer também entrem na conta.
Euller Felix: Qual é a função da crítica e do crítico de cinema para você, sobretudo nos dias de hoje?
Luiz Soares Júnior: Hoje e sempre, criação de valores, de cânones e de horizontes de pensamento, para orientar e situar o pessoal; isto exige rigor, erudição, um certo talento para equacionar uma à outra, fidelidade canina à escritura como algo quase que sagrado ( em todo caso, sacer: separado, nobre, à parte e acima),e é uma tarefa ainda mais difícil num país analfabeto como o nosso ( literal, funcional e agora fonético), em que devido a isso e outras tretas as pessoas parecem nutrir um terrível ressentimento contra a inteligência; Aristóteles dizia que a coragem é a virtude das virtudes, pois toda virtude possui em seu cerne ou essência um bocado de coragem, e isso não seria diferente para a nossa atividade