A dedicatória do novo filme de Gaspar Nóe já me derrubou e ali eu percebi que eu ia gostar do que iria ver. A frase é: “a todos aqueles que o cérebro se decomporá antes do coração”, li isso e pronto, já estava dentro do filme. É muito interessante o quanto a subjetividade de cada um aumenta a experiência que desenvolvemos com um ou outro filme. O fato de reconhecer nas cenas que vemos desenrolar na tela faz com que a gente crie uma conexão importante, conexão essa que só contribui para a obra, que já era boa.
Pela dedicatória já dá para ter uma noção sobre o que se trata o filme de Nóe, sobre a decomposição do cérebro de pessoas e, consequentemente, da vida como elas entendem. Veremos pessoas que antes viviam sua vida de forma independente e fazendo tudo que tem vontade, virando pessoas que não conseguem fazer tarefas simples, que entram no mercado e se esquecem do que estavam procurando e se desesperam ao ponto de nem saber onde estão. O desenvolvimento de pessoas que antes tinham uma vida, mas por conta da doença e da idade agora não conseguem mais se sentir bem vivendo, pelo contrário, quando não estão acometidos pela doença, são acometidos pela culpa de dar trabalho. É sobre isso o filme, e vemos tudo isso pela perspectiva de pessoas que estão passando por essas situações.
Acompanhamos o casal composto por Dario Argento (o grande mestre do horror) e a Françoise Lebrun (atriz que fez o filme “A Mãe e a Puta” de Jean Eustache). O homem é um pesquisador e está escrevendo um livro que busca relacionar os filmes com o sonho. Já a mulher é uma psiquiatra aposentada e que está enfrentando uma doença degenerativa no cérebro, e isso faz consequentemente, que a vida também acabe se degenerando. E é isso que vemos durante as duas horas de filme, a degeneração do cérebro e da vida daquelas pessoas.
Vale lembrar aqui que o tema foi explorado em um ótimo filme recente (pra mim o melhor do ano de 2020), “Meu Pai” de Florian Zeller e que explorou o tema do alzheimer através do olhar de uma pessoa que estaria passando por essa situação, somos jogados e sentimos durante o tempo do filme a desorientação proveniente da degeneração cerebral.
Mas o filme não é bom apenas pelo seu tema, a forma como o diretor decidiu contar a história também foi interessante. Logo no inicio do filme, vemos o casal em sua cama, a mulher acorda e parece estar assustada com alguma coisa, nesse momento uma linha – que parece ser um sangue escorrendo de cima para baixo – começa a dividir a tela em duas e acompanhamos assim do inicio até o fim do filme. As duas partes são divididas igualmente e os acontecimentos vão se desenrolando simultaneamente. Em alguns momentos vemos diálogos entre as pessoas envolvidas na família, em outros momentos vemos eles agindo e vivendo cada um a sua própria vida. Isso me parece ter feito com que nós nos ligássemos mais ainda com aquelas pessoas que estamos vendo.
E mesmo que a tela esteja dividida e que mostrem ações distintas, não há nenhuma confusão para se assistir ao filme, e a tela não é um incomodo, muito pelo contrário, parece que essa forma escolhida por Noé na verdade aprofunda ainda mais as pessoas daquela história que estamos vendo. É um talentoso diretor colocando a serviço da sua história toda a linguagem e a possibilidade que a forma cinematográfica pode nos proporcionar.
Tudo na obra, desde a história até a forma como o diretor decidiu utilizar para conta-la me cativou, me colocou dentro da obra e me emocionou, é mais uma daquelas obras que eu pretendo rever durante a vida inteira, por mais dolorido que isso possa ser.
Assistindo ao filme eu me lembrei de uma frase que li no livro “A Magia do Cinema” de Roger Ebert: “O cinema é, entre todas as artes, aquela que tem o maior poder de empatia, e bons filmes farão de nós seres melhores”. O novo filme de Gaspar Nóe me fez pensar muito nessa frase e me parece se encaixar muito bem nela.