Normalmente quando se fala na invenção do cinema é muito comum – não sem razão – falar sobre a exibição no Café Paris realizada pelos irmãos Lumière em 1895. Mas, há um registro mais antigo, um experimento realizado Eadweard Muybridge onde ele captou com 24 câmeras a imagem de um homem andando de cavalo. Começo falando dessa história pois, Gilbert Domm, o homem negro fotografado nesse experimento de Eadweard, seria o tatataravô das personagens principais do novo filme de Jordan Peele, “Não! Não Olhe!”.
As principais personagens deste filme são: O.J (Daniel Kaluuya) e sua irmã Emerald Haywood (Keke Palmer), que juntos mantém o negócio de treinadores de cavalos para produções de filmes e qualquer outro tipo de produção que necessite dos animais. Os irmãos acabam assumindo o negócio depois que o pai morre em um estranho evento, alguns pequenos materiais metálicos acabam caindo do céu e o atinge em cheio.
Esse primeiro evento já denota a estranheza desse novo filme de Jordan Peele. Não há uma explicação lógica, nem para nós que estamos assistindo e menos ainda para aqueles personagens que estão inseridos na história do filme. É comentado que esses pequenos objetos podem/devem ter caído de um avião bi-motor e que por azar atingiu uma pessoa. O.J não vê muito sentido nessa versão, já que o barulho e o que viu não pareciam nada com um avião convencional.
Aqui há a faceta lovecraftiana da nova obra de Peele. O novo filme se trata de um animal/criatura/predadora alienígena que vem do espaço e acaba com tudo que está na sua frente e/ou te desafia. Assim como parte dos monstros cósmicos ou que vieram do espaço oriundo da obra de H.P Lovecraft, em “Não! Não Olhe!” Não existe uma explicação para aquela criatura, no máximo só sabemos mais ou menos o tempo em que ela atormenta aquela região. E ainda assim não é bem uma grande certeza, afinal não há também uma explicação de como ela chegou ali. Ela simplesmente está ali, e toda e qualquer vida que esteja presente naquele local não é importante. A única coisa que realmente importa para aquela criatura é saciar as suas necessidades.
Talvez seja um lugar comum colocar o novo filme de Peele no âmbito dos filmes lovecraftiano, mas acredito que este seja o caso. Conseguimos ver os elementos que estão presentes em boa parte das obras de Lovecraft, desde os monstros que são seres com um poder imenso, até o fato de que as personagens da história não estão a procura de nada, mas o perigo acaba aparecendo no seu quintal e os obrigando a tomar uma ação perante aquilo.
Para além de Lovecraft, o novo filme de Jordan Peele me lembrou também o antológico texto de bell hooks “o olhar opositivo – a expectadora negra“. Explico: todo o filme tem uma relação com a questão de que o ato de se olhar representa algo, o fato de se olhar para um animal predador faz com ele tenha o instinto e a vontade de atacar a sua presa. E também o olhar aqui é visto como uma afronta e um ato de resistência e salvação. A partir da relação em que o personagem de Kaluuya faz a relação entre o alienígena e o olhar eu fiquei pensando o quanto a bell hooks demonstrou a importância desse ato e, principalmente, o quanto o fato de se “olhar algo” é um ato político.
Essa ideia do “olhar” é algo que é presente neste novo filme do diretor, primeiro pela relação entre o olhar daqueles que se colocam na função de “adestradores” indo até a questão de como o animal que ou está sendo adestrado ou é uma presa se sente em relação a esse olhar. No texto de hooks ela comenta o quanto a ideia do olhar pode representar algo punitivo. Seja quando é obrigada a olhar para os país ou alguém mais velho quando se está tomando uma bronca, seja na história resgatada por ela no seu texto onde as pessoas negras escravizadas eram punidas pelo fato de olharem algo que os senhores de escravos consideravam que não deveria ser visto. Jordan Peele em “Não! Não Olhe!” retorna a essa questão do olhar e da punição por ele explorada por bell hooks.
E no filme há também outro elemento do texto, a teimosia e o fato de que é necessário olhar para sobreviver. É necessário olhar para resistir. bell hooks diz: “Que todas as tentativas de reprimir o poder nosso/das pessoas negras de olhar havia produzido em nós uma ânsia avassaladora de olhar, um desejo rebelde, um olhar opositivo. Ao termos coragem de olhar, nós desafiadoramente declaramos: “Eu não só vou olhar. Quero que meu olhar mude a realidade”.” e é o que vemos no filme. As personagens querem olhar o que está acontecendo na fazendo, buscam meios – eletrônicos inclusive – de se olhar aqueles eventos, buscam meios de confrontar aquele olhar que oprime. E não é sem razão que o final do filme é todo baseado na coragem de se olhar e se opor a algo que busca destruir aquelas pessoas.
Com exceção de “Corra!”, que é quase uma unanimidade em relação a sua qualidade, “Não! Não Olhe!” vem dividindo as opiniões, no entanto, considero mais um exemplo de que Jordan Peele é um dos maiores cineastas em atividade hoje no cinema. Seja com qual história for, desde uma história sobre invasores de corpos, ou que vivem no subterrâneo, ou mesmo em uma história de alienígena, ele consegue dominar todos esses elementos com uma maestria que anima qualquer um.
Uma última curiosidade: enquanto estava escrevendo este texto me deparei com um tuite do ano de 2014 de Jordan Peele em que ele diz: “Dreamt that a baby chimp attacked some people then ran to me and hugged me all scared. I woke up with tears streaming down my face.” (“Sonhei que um chimpanzé bebê atacou algumas pessoas e então correu até mim e me abraçou todo assustado. Acordei com lágrimas escorrendo pelo meu rosto.”). Provavelmente a ideia do plot do chimpanzé no filme tenha surgido dai. Interessante o quanto alguns sonhos ou pensamentos ficam por anos em nossa memória e se desenvolve em outra coisa, no caso de Peele, em um elemento interessantíssimo em um filme.
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