David Cronenberg é um daqueles cineastas que não importa em que período seja, se ele dirigindo um filme eu vou querer assistir. Talvez isso aconteça por conta da sua contribuição para o cinema de horror, com filmes que fizeram parte da minha trajetória e que tiveram uma grande influência no meu gosto pelo gênero, como é o caso de “A Mosca” (1986), “Videodrome” (1983), “Crash”(1996), “eXistenZ” (1999), entre outros. Acredito que seja um dos grandes mestres do cinema de horror que eu preciso rever um filme dele por ano.
Quando pensamos no cinema de Cronenberg logo vem a nossa mente o horror corporal. Aquele tipo de filme de horror que mexe com as entranhas, que mostra intensas transformações corporais e que fazem, na maioria dos casos, os personagens deixarem de ser mais, humanos, por assim dizer. Esse elemento da filmografia do diretor é sempre lembrada na ocasião de lançamentos de obras de outros cineastas que focam os acontecimentos da sua história no horror corporal. Aconteceu com “Titane” e “Raw” de Julia Ducournau, dois filmes que, a sua maneira, utilizam o horror corporal como ferramenta para contar a história. Aqui no Brasil recentemente tivemos o filme “Carro-Rei” de Renata Pinheiro, e os textos que li sobre o filme também são um exemplo de como o cinema de David Cronenberg não só influenciou os diretores em atividade, como também é algo muito vívido no repertório da crítica.
Dado essa notória trajetória e importância do cinema de David Cronenberg era óbvio que muitos cinéfilos estavam aguardando ansiosamente o seu novo filme, “Crimes do Futuro”. Acredito – e isso aqui é só uma suposição, já que não podemos prever algo que não aconteceu – que mesmo que o filme não estivesse presente na seleção de Cannes em 2022 ele ainda teria o mesmo clamor que está tendo entre os fãs do gênero. Até pelo fato de que os fãs de cinema de horror são, em sua maioria, fiéis a obras e diretores, sempre buscando consumir as novidades de ícones consagrados do gênero.
Aqui cabe algumas perguntas: afinal, do que se trata “Crimes do Futuro”? e; David Cronenberg ainda hoje consegue nos cativar com seus novos filmes? Para ser sincero, a resposta mais fácil dessas duas perguntas é a ultima. Sim, Cronenberg parece ainda ter muito o que dizer. Assistindo ao filme, senti que o diretor entende muito bem o momento em que ele está e, principalmente, o momento em que o cinema está. Ele sabe onde colocar a câmera, sabe o que privilegiar na cena, sabe qual parte deve ser contada em determinado momento do decorrer do filme. Cronenberg sabe o que está fazendo.
Já a segunda pergunta pergunta eu considero um tanto complexa. Um pequeno resumo: Saul (Viggo Mortensen) e Caprice (Léa Seydoux) fazem uma performance retirando órgãos que crescem involuntariamente no corpo de Saul. As performance são essas cirurgias que são expostas completamente de forma gráfica para os voyeurs – que no caso somos nós, expectadores do filme e aqueles que estão assistindo a performance.
Alias, essa ideia de “voyeur” é explorada de forma bem literal por Cronenberg, neste mundo que estamos vendo, as pessoas não sentem mais a dor, na verdade, parecem sentir prazer quando tem suas peles perfuradas por diversos objetos. “A cirurgia é o novo sexo” é uma frase que escutamos no filme. E nesse momento, vendo as cenas em que as pessoas sentiam prazer em ter partes do seu corpo perfurados me fez lembrar do filme “Hellraiser” dirigido por Clive Barker. As pessoas parecem ter chegado em um estágio da evolução humana em que a dor não é algo penoso, e sim prazeroso. Alias, a sensação ruim que a dor pode causar é algo que as pessoas, neste mundo, parecem almejar, querem sentir, só sabem o que é a partir da sua imaginação, dos seus sonhos.
Além de toda essa questão dos corpos – do prazer no corte e na perfuração -, há também uma espécie de grupo que luta e discursa sobre uma evolução da espécie humana. Esses órgãos que crescem nos corpos das pessoas – dentro e fora – são indicativos de que a espécie humana está evoluindo. Tanto que, o inicio do filme, é o de mostrar uma criança comendo plástico como se fosse um alimento qualquer, o sistema digestivo é tão evoluído que consegue digerir qualquer forma de plástico – mas, ironicamente, não consegue ou não se dá bem digerindo alimentos comuns.
Há muito o que se pensar sobre o novo filme de David Cronenberg, e é claro que tudo não cabe nesse pequeno texto crítico, talvez em uma futura revisão novos elementos emerjam. Isso é só mais um aspecto do quanto o Cronenberg ainda pode nos fazer ficar com os olhos vidrados em uma tela. Consegue inovar dentro de um subgênero do horror em que ele mesmo já era um grande mestre. “Crimes do Futuro” é, talvez, uma daquelas obras que sempre lembraremos da filmografia do diretor. É um exemplo de como um bom diretor consegue amadurecer e se reinventar sempre.