Já ouvi de críticos e pesquisadores de cinema que a importância histórica de um filme não deve ser um critério na avaliação de um crítico sobre uma obra. Que o fato de uma obra falar sobre um assunto relevante, dentro da sociedade em que vivemos, não deve ser levado em conta na sua avaliação. Basicamente: deveríamos olhar apenas a forma do filme, analisar em seus parâmetros objetivos e técnicos e esquecer quase toda a sua subjetividade. Não consigo ver essa crítica, essa forma de ver filmes, como algo construtivo. Nem para a sociedade, muito menos para o cinema.
Parece que temos que voltar um pouco nas discussões sobre cinema. Há pessoas que acreditam que temos que assistir ao filme, ou consumir qualquer expressão artística como algo fora da sociedade. Algo que, na verdade, é irreal e impossível. Muitos dos pensadores clássicos do cinema, desde os soviéticos, passando por Bazin e até os dias de hoje, discutem a importância da sociedade na criação e construção de uma obra. Os filmes russos, os que fazem parte do expressionismo alemão, o cinema noir, o neorrealismo italiano e muitos outros têm uma enorme influência da sociedade da época em que esses filmes foram pensados, produzidos e lançados. Uma obra não está separada da sua época. Um pensador do cinema não pode negar as influências da sociedade e nem as tentativas de intervenção desses filmes na realidade em que vivemos.
Por isso que, sim, em uma sociedade estruturalmente racista, machista e homofobica, entendo e defendo que nós, criticos, temos que não só dar visibilidade para filmes feito por pessoas negras, mulheres e LGBTQIA+, como também prolongar a vida e as discussões sobre essas obras.
E basta uma simples pesquisada por livros sobre a história do cinema que veremos que essas pessoas não tiveram a sua importância devidamente creditada, como deveria ter sido.
Nesse sentido, quando estava pensando nesse meu autodesafio de escrever durante um tempo nesta coluna sobre filmes dirigidos por mulheres, eu entendi que há a importância de dedicar um espaço aqui para filmes dirigidos por mulheres trans. Procurei lugares onde eu poderia ter acesso e assistir filmes dirigidos por pessoas trans e acabei conhecendo a plataforma Tela Trans, que faz essa ponte entre os filmes dirigidos por pessoas trans e pessoas que querem assistir essas obras.
Passeando por essa importantíssima plataforma que possui longas e curtas metragens eu encontrei o filme “Tornar-se Monstra ou Humana” de Catarina Almanova, uma diretora do Pernambuco. O “curta-metragem/videoarte” como Catarina mesmo define é de uma força tão grande que me surpreendeu demais ver depois na biografia dela que ela, até o momento, não havia trabalhado com cinema. É um dos enormes exemplos de que quando as pessoas têm acesso e poder de contar histórias todos saem ganhando.
Apenas para que vocês, caros leitores, entendam e sintam curiosidade sobre essa lindíssima obra, deixo aqui a sinopse apresentada na plataforma: “Tornar-se Monstra ou Humana?” é um curta/videoarte que busca refletir sobre criar caminhos para que nós, corpas TRANS-possíveis, existam.” e na sinopse do YouTube continua “É sobre entender os processos de desumanização, quais estamos constantemente submetidas, de forma visceral, navegando o íntimo dessas inquietações por meio do sonho, pesadelo, encantamento e desejo de vida.” É um filme de uma lindeza tamanho. Assistam.
Tela Trans e o filme de Catarina Almanova só reforçam a necessidade de nos atentarmos às obras que falam sobre as inquietações do nosso tempo. Que falam sobre as situações que as pessoas reais estão vivendo. Há qualidade para além do cinema que já conhecemos, basta querermos e termos iniciativa de procurar e, principalmente, escrever e falar sobre eles.
Conheça e assista aos filmes da plataforma, vocês não vão se arrepender
https://telatrans.com.br/
Texto originalmente publicado na coluna Mundo Fantástico na página do Festival Cinefantasy no dia 11 de fevereiro de 2022.