O cinema é e tem que ser para todas as pessoas. Quem quer ter acesso ao cinema têm que poder ter esse acesso. Falo aqui de cinema de uma forma bem ampla de experiências, não apenas a de assistir a um determinado filme em uma sala de cinema. Inclusive, sempre que escuto “ESSE FILME PRECISA SER VISTO NOS CINEMAS” meus olhos se reviram. Dizer isso é basicamente dizer que a única experiência possível e valida com um filme é na sala de cinema.
Não estou dizendo que é a mesma coisa assistir um filme em casa e no cinema. Mas, vivemos em um mundo repleto de desigualdades sociais, as pessoas procuram dar os seus jeitos para sobreviver e curtir os seus hobbies e paixões. O cinema não é diferente. Falo por experiência própria, por morar em periferia, muitos filmes me são extremamente difíceis de se assistir na tela do cinema. Longe do centro e com dificuldades de acesso aos bairros centrais – onde, na maioria das vezes, os filmes ditos de arte ou que estão foram do padrão de shopping são exibidos – fica realmente muito difícil que eu realmente consiga assistir esses filmes. Então, não conseguindo assistir esse filme naquela sala escura e tela gigante significa que minha experiência com um determinado filme não valeu? Discordo e muito disso.
Essa introdução para falar que existe o Festival Olhar Periférico, e que nesse ano de estreia – em meio a pandemia e a crise sanitária e política que o Brasil e a cultura brasileira vive – acontece por meios virtuais. Os filmes ficaram disponíveis através do site https://culturaemcasa.com.br/ e todo mundo poderia assistir aos filmes por lá. Todas aquelas ótimas produções ao alcance de um click. Cinema para mim é isso, é arte e inclusão.
Por conta dos problemas do jovem trabalhador não consegui acompanhar todo o festival (que ainda está acontecendo se você está lendo o texto no dia da publicação), então escolhi um dos filmes que vi para escrever sobre ele. “Filme de Aborto” de Lincoln Péricles foi o que mais gostei e que melhor representa essa ideia de inclusão e de reflexão sobre questões periféricas, de classe e de gênero.
Um pequeno resumo: vemos a história de um jovem casal periférico e trabalhadores que se vêem na posição de uma gravidez indesejada, a partir daí vemos as reflexões deste casal sobre a ideia de trazer uma nova pessoa a esse mundo, a ideia de fazer um aborto, sobre os papéis de gênero e também reflexões sobre as experiências de trabalho que tiveram durante a sua vida. Tudo isso através de uma narração que hora parece ser diegética e hora não diegética, enquanto isso vemos imagens e paisagens se movimentando na tela quanto ouvimos as reflexões sendo narradas.
Há uma diferença entre o que acontece no filme e a realidade propriamente dita, aqui tanto a mulher quanto o homem (cis e hétero) podem ficar grávidos. Inclusive é na narração sobre a questão da gravidez que ouvimos uma inversão de papel. A mulher sabe que o parceiro está grávido e fala coisas do tipo, “se fosse eu que tivesse grávida eu estaria mais nervosa, mas como é ele eu tô tranquila” e se eximindo mesmo das responsabilidades que ela teria. Que é o que acontece na maioria das situações, o abandono paternal e a responsabilidade apenas para o lado da mãe. Em “Filme de Aborto”, Lincoln Péricles inverte a realidade e coloca o homem nessa situação.
É interessante que no filme há exatamente aquela afirmação que as vezes roda as redes sociais, de que se o homem ficasse grávido o aborto seria legalizado. Aqui ele é, ouvimos até que ele é realizado por convênios. Aliás, nessa parte, vemos a mulher dizendo que esse é um dos motivos que ela está tranquila, que ele conseguirá fazer o aborto em um lugar próprio e sem a possibilidade de morrer ou ser preso.
Toda a discussão sobre o aborto é necessária, ela nos remete não só as discussões sobre interromper ou não uma gestação, como também um debate sobre métodos contraceptivos. Há esse debate nos lugares públicos? Jovens hoje em dia tem todas as informações? Se eles não tem, devem ser punidos com a morte ou a prisão por tentar impedir que a gestação continue? São muitas perguntas que levaria mais do que essas simples linhas para serem respondidas. Mas um filme como esse consegue nos suscitar uma abordagem crítica sobre elas.