Celebrar a publicação de bons livros sobre cinema aqui no Brasil é algo que eu considero importante. Por isso, conversei com o querido amigo Humberto Silva sobre a publicação de seu novo trabalho sobre gêneros cinematográficos e a Nova Hollywood.
A publicação é em e-book pela https://mnemocine.com.br/ e você consegue encontrar na Amazon. Eu li algumas partes do livro e recomendo bastante.
Fiquem com a entrevista.
Euller Felix: Para começar, você pode nos falar um pouco sobre como surgiu o
projeto e também sobre a editora?
Humberto Silva: Trata-se de uma publicação bastante casual. Anos atrás eu dei um curso na Academia Internacional de Cinema, especificamente sobre a Nova Hollywood. Até então a Nova Hollywood, como tema de estudo, de leitura ou de pesquisa, praticamente não tinha minha atenção. Os filmes, sim, claro, eu sou de uma geração que acompanhou o final da Nova Hollywood. Adolescente, lembro do lançamento de filmes como Um dia de cão (1975), do Sidney Lumet, Todos os homens do presidente (1976), do Alan Pakula, Noivo neurótico, noiva nervosa (1977), do Woody Allen, Amargo regresso (1978), do Hal Ashby, Kramer versus Kramer (1979), do Robert Benton, Reds (1981), do Warren Beatty. São filmes que ficaram na minha cabeça quando eu não tinha ideia de que havia cinema fora dos Estados Unidos.
Mas então, o curso na AIC me lançou na leitura de livros, na recepção crítica, nos estudos, em diversos autores que escreveram sobre o tema, como Robin Wood, Peter Biskind, Mark Harris e, veja, um francês que eu ignorava e que agora estou traduzindo, o Jean-Baptiste Thoret. Para as aulas, então, eu preparei algo como uma apostila, que foi se avolumando à medida que eu via filmes dos quais só tinha referência, revia muitos que há muitos não via e, principalmente, me afundava nas leituras. Terminado o curso, a apostila foi arquivada.
Esse, assim, um primeiro momento. Um segundo, mais recente, teve início com um curso sobre gêneros cinematográficos, que preparei para uma Pós-graduação online. Uma parceria entre a FAAP e o UOL. Sobre as questões que envolvem os gêneros cinematográficos, sim, há tempo me dedico ao assunto nas aulas de história do cinema. Agora, a ideia de avivar a apostila adormecida, juntar as coisas e ter espaço para publicação me veio de conversas que tive com o Flávio Brito, amigo, colega professor na FAAP, que conduz o site Mnemocine e abriu uma linha de publicação de e-books.
De fato, veja, antes mesmo da ideia do e-book sobre Gêneros cinematográficos e a Nova Hollywood, eu já tinha um bom trânsito no Mnemocine. Com o Flávio e o André Gatti, nós editamos a revista Mnemocine, um espaço aberto para publicações de artigos semiacadêmicos de cinema, dossiers e resenhas. Então, o e-book sobre Gêneros cinematográficos e a Nova Hollywood se insere numa linha de publicações que estamos estimulando e que, além do meu, está pra sair um do Sérgio Alpendre, sobre Luchino Visconti, e outro com textos de cobertura de importantes festivais de cinema feita quase que exclusivamente por alunos e ex-alunos do curso de cinema da FAAP. São textos de jovens críticos bem promissores e que recebeu o título de Cinema Inocente.
Euller Felix: O projeto trata da questão dos gêneros cinematográficos, que é um assunto amplo, como você lidou com filmes que atravessam um gênero e podem ser considerados híbridos?
Humberto Silva: Gêneros cinematográficos é um assunto bastante amplo, de fato, espinhoso e cheio de armadilhas. Um problema que vejo com frequência é o uso da expressão “filmes de gênero” para denotar uma coisa bem precisa. Como se denotasse algo do tipo: isso é uma panorâmica e aquilo um travelling ou isso um plano geral e aquilo um close-up…; tecnicamente, não é possível confundir voz-over e voz-off…; contudo, isso não é possível quando falamos de gêneros no cinema. Todo filme, em princípio, pode ser catalogado em um gênero. Mas não é esse o uso comum quando se está diante de um filme reconhecido como terror e de um filme reconhecido como de um autor.
Vejamos, a adoção de gêneros, na literatura ou no cinema, supõe fundamentalmente duas coisas: o estabelecimento de convenções e, em decorrência, o reconhecimento delas. Convenções, obviamente desnecessário dizer são arbitrárias. Portanto, os gêneros no cinema são fundamentalmente flutuantes. Mas, tacitamente, à medida que são acolhidas as chamadas “convenções de gênero” reconhecem-se um terror, um western, etc. Ocorre que, se formos excessivamente rigorosos, acredito ser praticamente impossível isolar um “filme de gênero puro”, sem qualquer contaminação, para usar metáfora da biologia.
Ora, “filmes históricos” podem constituir um gênero, “filmes de guerra” outro, “filmes épicos” mais um gênero fílmico e tudo isso eu posso ver em um filme catalogado e reconhecido como um western. Justamente por isso, cabe a indagação: … E o vento levou (1939), que trata da Guerra Civil americana, é um western? Ou, Três homens em conflito (1966), do Sergio Leoni, cuja ação se dá também durante a Guerra Civil americana, é um filme histórico?
O hibridismo a que você chama a atenção na pergunta é para mim um nó bem difícil de ser desatado. Mesmo quando aceitamos sem questionamento um filme como contido num gênero bem demarcado. Flutuações como a que me referi são abordadas no e-book, que parte do pressuposto de que tacitamente aceitamos (o espectador), os códigos de gênero sem questionarmos sua fluidez e suas zonas de atrito. Legião Invencível (1949), de John Ford é reconhecidamente um western centrado na figura do General Custer; a silhueta desse mesmo General é vista em Pequeno grande homem (1970), de Arthur Penn. Em Ford, no contexto das Guerras Indígenas, exalta-se o heroísmo militar; em Penn, nesse mesmo contexto de guerra, procede-se ao revisionismo histórico.
Há, ainda, quando falamos em gêneros cinematográficos, uma questão que muitas vezes é vista de rabo de olho, a que opõe “filmes de gênero” e “filmes de autor”. Desnecessário dizer que há pressuposição geral de que essas duas expressões se contrapõem. No entanto, o nome mais célebre, acho que assim posso dizer…, Hitchcock, é celebrado e reconhecidamente um autor, tanto quanto na mesma proporção um diretor de “filmes de gênero”. Psicose (1960), eis a denotação a que fiz referência antes, pode ser catalogado e devidamente reconhecido como terror. Inclusive com influência desmedida no gênero. Mas também ser visto como um filme com a assinatura Alfred Hitchcock. A mesma que assina suspense, thriller, espionagem, perseguição…
Questões assim, que envolvem autoria, hibridismos, flutuações, transformações, reconfigurações, são abordadas no e-book.
Euller Felix: Você buscou delimitar algo ou utilizou algum critério objetivo?
Humberto Silva: Como você mesmo realçou, o assunto gêneros cinematográficos é bastante amplo. Qualquer que seja a abordagem, portanto, faz-se necessário um recorte. Para o e-book, o recorte incide na maneira pela qual os grandes estúdios de Hollywood nas décadas de 1930 e de 1940, os majors, se estruturaram e orientaram suas produções a partir da ideia de “filmes de gênero”. Com esse recorte, o pressuposto de que os executivos dos majors entendiam os chamados “filmes de gênero” pelo princípio da linha de montagem. Algo similar ao que recentemente recebe o nome de franquia.
Sintomático dessa orientação é a enorme quantidade de musicais, filmes de gângster, terror realizados nos primeiros anos da década de 1930. Inicialmente pelos grandes estúdios, mas que foram seguidos pelos estúdios do chamado cinturão da pobreza, “especializados” em filmes B. Os “filmes de gênero” se impõem na era de ouro de Hollywood de tal modo que o terror passar a ser uma marca da Universal, assim como o musical uma marca da Metro.
Então, para o cinema norte-americano, Hollywood, “filmes de gênero” se inscrevem numa estratégia de marketing. A adoção de gêneros permitiu que os filmes fossem reconhecidos e esperados na Hollywood Clássica. No e-book eu privilegiei, com isso, o recorte comercial que mobiliza a indústria de cinema em torno dos gêneros fílmicos. E a identificação de um filme a um gênero para mim foi tão bem sucedida que sobreviveu ao declínio dos grandes estúdios em meados da década de 1950, quando não mais os majors se orientaram pelo princípio da linha de montagem.
De modo que com a Nova Hollywood, momento de grande autonomia autoral no cinema norte-americanos do final da década de 1960 até os primeiros anos da de 1980, não só a ideia de “filmes de gênero” não foi abandonada como foi marcada pela reconfiguração e reacomodação dos gêneros à nova realidade dos negócios no mundo do cinema. Ou seja, com a Nova Hollywood os gêneros da Hollywood Clássica se transformam e assim se servem como estratégia de divulgação. O poderoso chefão (1972), do Francis Ford Coppola, para pegar um exemplo pontual, redefine o gênero gângster.
Euller Felix: A Nova Hollywood é um tema importante para a história do cinema, o que você pode nos dizer que esse livro vai nos ajudar a pensar sobre o assunto?
Humberto Silva: A expressão “Nova Hollywood” para quem estuda cinema, ou para quem se atém a ele de forma profissional ou não, está no horizonte com maior ou menor intensidade. Nesse sentido, ela desponta como outras ao longo da história do cinema: realismo socialista, cinema experimental, mais recentemente cinema de fluxo…
Então veja, se eu quiser saber sobre esses momentos, vou encontrar na internet links, links e mais links sobre a Nova Hollywood. Duas coisas, no entanto, destaco numa curiosidade assim sobre a Nova Hollywood – ou mesmo se, além da curiosidade imediata, eu tiver necessidade profissional.
A primeira coisa é a inevitável dispersividade em qualquer revista na internet. Para uma consulta rápida, casual e desinteressada, a internet inegavelmente é uma mão na roda. Mas na internet tudo é muito solto, disperso, muitas vezes incompleto e repetitivo à exaustão. A segunda coisa que destaco é que eu posso ter de antemão uma finalidade bem definida na consulta, as referências bem estabelecidas. Aí me caberia apenas procurar o que efetivamente quero. Entretanto, novamente um trabalho quase insano. É um acidente pouco provável encontrar, por exemplo, o PDF grátis de um livro que eu não teria outro meio para o acessar. Sim, acho o livro, um artigo que desejo ler, mas não o posso abrir…
Diante de um quadro assim, meu objetivo primeiro com o e-book é oferecer a estudantes, cinéfilos, a todos que tenham curiosidade para saber sobre o momento Nova Hollywood no cinema norte-americano, um material grátis, na forma e-book, e que organiza, estrutura o assunto Nova Hollywood em torno dos gêneros cinematográficos. Importante: penso menos que o e-book traga novidades, um “novo olhar” sobre o assunto, do que se sirva como material de consulta. Entendo que para o assunto Nova Hollywood, apesar da importância na história do cinema a que você se refere, praticamente não há publicação em português na forma livro ou e-book. Em termos bem práticos, a ideia é a de fazer circular o assunto além da dispersividade com que possa ser encontrado em links e mais links na internet.
Euller Felix: A apresentação do Sergio Alpendre me deixou bem curioso. Pode nos contar um pouco mais sobre essa escolha?
Humberto Silva: Alpendre é um desassisado (riso) por cinema norte-americano. Tem um repertório dez, vinte, trinta vezes maior do que o meu. É um crítico, professor, seríssimo, que admiro muito, na mesma medida em que temos visões antípodas (riso novamente) sobre cinema. Convidá-lo para a apresentação de Gêneros cinematográficos e a Nova Hollywood foi uma maneira de eu expressar o enorme respeito que tenho pelo trabalho dele. Consideradas nossas visões antagônicas, sei que, sério e com desmedido conhecimento no assunto, apontaria cirurgicamente para problemas nesse e-book que uma apresentação protocolarmente elogiosa não o faria.
Há mais ainda. Quando na pergunta você diz que ficou curioso, posso lhe assegurar que é uma curiosidade assim que eu gostaria de estimular nos leitores. Ao ler uma apresentação que traz problemas ao e-book, o leitor se sentir provocado a lê-lo e, eventualmente, ao final concordar ou não com o Alpendre. Fundamentalmente, entendo que sem atrito, confronto, discordância, não há vida inteligente no mundo civilizado. Reforço: no mundo civilizado, pois fora dele a barbárie.