Por ser crítico de cinema, tenho como principal ponto de partida a ideia de que os filmes merecem ser vistos. Não pretendo nunca ser o tipo de pessoa que diz “você não deve assistir tal filme”, acho que isso vai contra o sentido da crítica como instrumento de discussão. Deste modo, mesmo que considere um filme ruim, vou ser sempre a favor de que o filme exista e que as pessoas tenham a oportunidade de assisti-lo.
Dentro deste contexto, temos a discussão cinematográfica do momento: o filme Emília Perez, de Jacques Audiard. A questão aqui é que as discussões não giram em torno da obra, da sua história, técnica, estilo ou méritos e deméritos, mas do que temos para além do filme.
Para mim, pensando para além das discussões em torno do filme, considero ele bem ruim. A mistura de gênero (algo que normalmente eu gosto) é mal feita, as músicas não são boas e não vejo as qualidades técnicas que os colegas tanto dizem, fora a atuação da Zoe e Karla. Mas, realmente precisamos ignorar o extracampo para falar do filme, como dizem alguns colegas da crítica?
Fazer isso é, para mim, um não compreendimento do que é o Cinema e de qual é o papel da crítica. É não compreender que o cinema e a vida real, mesmo em filmes fantásticos e musicais, de todos os gêneros possíveis, se misturam e se afetam mutuamente. O diretor é uma pessoa que possui visões de vida e de mundo, e essas visões estão dentro do filme. Todos os filmes carregam dentro de si as visões de mundo dos seus respectivos realizadores. Ignorar isso é um erro crítico, é analisar um filme pela metade.
Os filmes são impactados pelo que aconteceu no mundo e em alguns casos o mundo é impactado por alguns filmes. Não há como descolar um do outro. Sendo assim, não faz sentido o argumento crítico de que a obra é uma coisa e o realizador é outro.
No entanto, como dito no início do texto, não faz sentido dizer que o filme não merece ser visto, mesmo que eu considere a visão do diretor sobre o mundo uma coisa absurda. A minha função enquanto crítico é discutir a obra. Ela é boa, ela é ruim? Isso realmente pouco importa. O que importa, acredito eu, é o que podemos tirar de discussão sobre o filme. Essa é a função da crítica de cinema, não dar uma resposta de bandeja, mas prolongar a experiência de se assistir um filme (Bazin). E só podemos fazer isso quando discutimos o filme em todos os seus aspectos.
Alguns colegas da crítica também estão caindo no erro de dizer que todos aqueles que estão falando mal de Emília Perez só fazem pois estão torcendo para Ainda Estou Aqui ou estão ignorando as qualidades técnicas em detrimento das polêmicas extracampo. O que só faz sentido na mente das pessoas que acreditam que o cinema é uma coisa enquanto o mundo é outra. Também só faz sentido se a pessoa se julga iluminada o bastante para acreditar que possui a “forma correta” de se assistir ao filme e que os outros não são dignos ou versados suficiente em arte para apreciar uma obra.
Considero que este seja um filme que todos aqueles que gostam minimamente de cinema devem assistir. Não por suas qualidades técnicas (que repito, acredito que tenha poucas), mas precisamente pelas suas discussões extrafilme. Assista ao filme, discuta sobre ele e sobre o que o diretor e os atores falaram. Isso também tem relação com a obra e com o cinema. Cinema é vida, e você não precisa ignorar o mundo e suas convicções para consumir uma obra.