O Brasil passou por um longo período de ditadura militar, mais especificamente de 1964 até 1985. Foi um momento conturbado da nossa história, quem se colocava contra os ditames da ditadura era preso, podia ser torturado e morto. Muitas pessoas foram mortas e, até os dias atuais, não se sabem nem em que lugar seus corpos foram enterrados ou abandonados. E o filme “Ainda Estou Aqui” de Walter Salles conta uma dessas histórias de dor e de luta.
Como cientista social que entende que estudar o passado é uma tarefa fundamental para compreender o presente, filme históricos sempre me chamam a atenção. Afinal, compreendo que uma obra cinema pode ser uma fonte historiográfica e sociológica importante. Sobretudo em relação as formas como um determinado tema é imaginado e reimaginado por diferentes cineastas e artistas. Com relação ao filme de Walter Salles, fica difícil pensar na obra sem colocar ele em perspectiva com outras que tratam da ditadura militar. Recentemente revi o “Que Bom Te Ver Viva” da Lúcia Murat e “Batismo de Sangue” de Helvécio Ratton, as imagens de um ecoavam e preenchiam as lacunas e elipses do outro.
Não precisamos ver as torturas físicas que aconteciam naquele período de “Ainda Estou Aqui”. Os sons do ambiente da prisão do filme de Salles são preenchidos pelas imagens que já vimos em outros filmes (ou mesmo nas aulas de histórias que tivemos ao longo de nossa vida escolar).
“Ainda Estou Aqui” é baseado no livro de mesmo nome de Marcelo Rubens Paiva e conta a história de como sua família e em especial sua mãe Eunice (Fernanda Torres e depois Fernanda Montenegro) sentiram a prisão e o desaparecimento e morte do ex deputado Rubens Paiva (Selton Melo). É o retrato de uma família que se viu despedaçada pela ditadura e que nem teve o direito de enterrar seu ente querido, pois a ditadura o matou e depois se livrou do corpo sem dar nem a chance da família velar e enterrar um ente querido.
O filme é sobre Eunice. Toda a atenção está nela. Como ela sente a família, suas preocupações e angústias, seus sentimentos conflitantes sobre os acontecimentos cotidianos. Depois vemos o quanto ela é obrigada a lutar e se manter forte para que sua família não seja destruída pelo desaparecimento do pai, que era admirado por todos. Fernanda Torres consegue expressar muito bem toda essa nuance e mudanças. Ficamos todos hipnotizados com tudo o que está acontecendo e com o quanto ela vai se desdobrando para se manter firme.
A forma como Walter Salles escolheu narrar a história também foi um acerto. O tom do filme durante a primeira parte do filme é alegre e acolhedora (assim como a família dos Paiva). Todos parecem ser bem vindos e todos parecem gostar de estar ali. É um tom que é quebrado com a chegada dos militares e com a prisão de Rubens. A partir desse acontecimento tudo parece ser mais sombrio e opressivo.
Parecem ser dois filmes diferentes, mas complementares. Primeiro vemos uma família vivendo a sua vida em meio a um dos períodos mais horríveis da nossa história, em seguida vemos o quanto esse período marcou e mudou profundamente a estrutura dessa mesma família.
Dentre as relações que vemos no filme se destaca a presença da filha, Vera (Valentina Herszage). Engajada politicamente, quem não conhece a história fica com medo dela ser em algum momento presa e torturada. Nos sentimos como sua mãe em alguns momentos, com grande preocupação. Pois vemos o que a filha pensa e como ela age e sabemos os perigos que ela está correndo por ser quem é.
As imagens do passado ecoam no presente. Difícil não se emocionar com a passagem de tempo e com os personagens envelhecidos e mais maduros. Ver como lidaram com as questões, como a luta continuou mesmo com o fim do regime ditatorial. E, para muitas famílias, continua até os dias de hoje.
“Ainda Estou Aqui” é um grande filme. Não só por suas qualidades técnicas, como pelo que representa e pela história que conta. Assistindo ao filme me lembrei de uma frase de uma entrevista da Maria Amélia Teles e acho que é uma boa forma de terminar essa crítica: “Não se consolida uma democracia com cadáveres insepultos”.