Como um bom fã de horror e um crítico que estuda cinema de gênero, adoro a criação de Mary Shelley, Frankenstein. Não só o livro, mas basicamente todos os filmes e outras histórias que envolvem a criatura ou que fazem referência a sua premissa básica. Dito isso, é até um pouco óbvio dizer que gostei do novo filme de Yorgos Lanthimos, Pobres Criaturas.
Lanthimos não faz uma história sobre um médico que rouba pedaços de corpos e junta para criar uma nova criatura. Ele faz a história sobre um médico chamado Godwin Baxter (Willian Dafoe) que encontra uma mulher que acaba de tirar a sua própria vida, que estava grávida, retira o cérebro da criança e implanta na mulher. Utilizando a eletricidade a mulher volta a vida, agora com o cérebro de uma criança. E é assim que somos apresentados a Bella Baxter (Emma Stone) e vamos acompanhar uma aventura de autodescoberta e libertação.
Antes vale tecer alguns comentários sobre o médico. Seu nome é Godwin, mas é chamado por Bella de God (Deus). É uma ideia simples, mas muito representativa. Aquele que cria, que da vida é representado por um homem com nome de deus. Ele também é uma figura controvérsia, apesar de sua genialidade em sua área de atuação, ele é rechaçado por sua aparência, todo remendado e costurado por conta de experimentos feitos pelo seu pai e por ele próprio. E isso é algo que achei interessante. Ele não tem essa aparência por ser uma criatura diferente dos seres humanos, aquelas cicatrizes conta a sua própria história, seu caminho atrás do conhecimento está marcado no seu corpo. As cicatrizes, remendos, deformações não fizeram dele uma criatura, e sim uma pessoa autoconsciente do seu próprio corpo e da anatomia humana.
E agora, falando sobre autoconhecimento, partimos para a personagem principal desse filme: Bella Baxter. Seu corpo e sua mente não estão em sintonia (afirmação do próprio Godwin) e passamos a primeira parte do filme entendendo isso. Ela brinca com objetos, parece tentar entender tudo que está na sua volta. Tudo que ela toca é incrível e maravilhoso. Ela está descobrindo o mundo e, assim como uma criança, se descobrindo dentro desse mundo.
A sua trajetória de descoberta a leva ao seu próprio corpo. Quando se toca se sente feliz. Bella Baxter descobre então o sexo. E aqui tem algo muito interessante: sexo não é algo que pode se moral ou imoral, é algo que faz Bella feliz. Para ela não faz sentido isso. Ela entende que precisa ter uma privacidade, que não deve ser algo feito em público, mas não vê sentido quando colocam a prática daquilo que a faz feliz em uma discussão moral. (É óbvio que se formos a fundo na questão filosófica iremos encontrar o debate sobre moral até no que se considera fora dos padrões morais, mas o filme não é sobre isso. Então continuemos.)
Na verdade, Bella não consegue compreender a relação entre o sexo e o sentimento de início. Tanto que ela se torna noiva de Max (Ramy Youssef), mas foge para transar e conhecer o mundo com Duncan (Mark Ruffalo). Deixando bem claro: estou indo, vou me divertir e quando voltar ela e Max podem se casar. Esse meio tempo, as relações que ela vai ter no meio do caminho não tem nada com isso.
E é nessa viagem de Bella que o filme fica ainda mais interessante. Vemos a sua jornada pelo conhecimento do mundo e dela mesmo. Bella vai entendendo como as coisas funcionam e o que (além do sexo) faz ela ficar feliz. Só que sua felicidade causa desconforto em Duncan. Bella não pode ser feliz sem ele, isso é algo que ele não está acostumado. Uma mulher que não precisa dele para alcançar a felicidade, que não projeta nele um futuro para que ele possa ter o prazer de destruir todas as expectativas, é algo novo e apavorante. Aí vemos Bella tendo que lutar contra o aprisionamento.
Todos os homens com quem Bella se relaciona tenta aprisionar ela. Em casa, na viagem, no casamento, na sua vida anterior. A natureza de Bella é lutar contra isso. É tentar, de todas as formas possíveis e necessárias, se manter livre. Somente a liberdade vai trazer a felicidade para ela.
O filme toca em muitos assuntos, podemos tirar diversas leituras dele. A desigualdade social, que faz com que pessoas desejam comer em um lugar em que podem ver outras morrendo de fome. Podemos também olhar para o filme de uma perspectiva de que somente o conhecimento do mundo e de si próprio pode trazer a felicidade e a satisfação que precisamos. E também discussões filosóficas sobre moral, imoralidade, felicidade, vida e morte. Tudo isso se faz presente em Pobres Criaturas. Inclusive, saindo do cinema pensei: parece que assisti uns três filmes diferentes em um só. Normalmente, quando sinto isso, fico incomodado. Mas nesse não, aqui a junção foi bem feita.
Pobres Criaturas parece, para mim, aquele filme que vai crescer ao longo do tempo. Que vai crescer a cada revisão e a cada nova leitura que se faz dele. É um filme para sempre se voltar e se relembrar.