O início de Barbie é uma referência/homenagem ao filme 2001 – Uma Odisseia no Espaço, com uma tecnologia nova e que muda a vida de todas as meninas. Uma boneca que agora representaria que ela poderia ser o que quisesse, e não apenas mãe. Mas, quero citar uma outra referência que parece estar presente em toda a nova obra de Greta Gerwig, o filme de 1906 da pioneira Alice Guy Blache, o Consequências do Feminismo. Nesta obra – e na de Greta – existe um mundo em que as mulheres dominam, as posições de poder estão todas concentradas nas mãos delas e a vida segue assim. Nos dois filmes quando essa lógica é redefinida, a posição das mulheres não só passa de dominante para dominada, como também a opressão de gênero é muito mais acentuada.
Em ambos os filmes, quando o mundo é dominado pelas mulheres, os homens estão em segundo plano, mas não parecem correr o risco de morrerem ou de serem atacados. Agora, quando os homens passam a dominar, quando o patriarcalismo começa a reinar, as mulheres perdem a sua posição de prestígio e também a sua sensação de segurança. Os homens não só colocam em perigo os rumos da sociedade, colocam em perigo a vida das mulheres.
Dito isto passemos de modo mais preciso sobre o filme, o enredo é simples: Barbie (Margot Robbie) começa a apresentar defeitos, não na sua estrutura corporal, mas em relação a sentimentos e pensamentos. No meio de uma festa ela pergunta às suas colegas se já pensaram em morrer. Depois, como um fruto desencadeado da raiz de um pensamento deslocado, a vida perfeita de Barbie começa a se apresentar como menos perfeita. A “água” do banho está fria, a torrada queimada, e outras “imperfeições” cotidianas começam a acontecer na sua rotina. E só há uma única alternativa para que ela volta a ser “perfeita”: ela precisa ir para o mundo real e encontrar quem brinca com ela.
É interessante notar a estrutura de relação e poder da Barbielandia, mesmo que haja ali uma estrutura convencional, presidente, juízes e etc. Todas elas têm a sua própria importância. Há prêmios que celebram a individualidade de cada uma das mais diversas Barbies que existiram na história.
Nessa estrutura existem os “Kens”. São vários e sua posição dentro daquela sociedade é somente existir. Eles não são subjugados, não são olhados como um pedaço de carne, não são oprimidos, mas existem simplesmente por existir.
Quando Barbie vai ao mundo real um Ken (Ryan Gosling) vai com ela e aprende sobre o patriarcado. Vendo que nesta forma de mundo ele é o importante e o seu gênero está no poder ele decide colocar isto em prática na Barbielandia, transformando aquilo no “Kenlandia” ou “Mundo de Ken”. Está parte do filme é o momento em que Greta coloca na tela todas as bizarrices, breguices, idiotices e tudo de “ices” masculinas. A casa não se chama casa, se chama “DOJO HOUSE CASA”, os homens adoram carros e acreditam que falar sobre eles é algo de extrema importância, adoram filmes clichês em que a “masculinidade” é aflorada. Tudo ali parece uma ótima sketch de comédia que, bem, todos nós já vimos por aí na realidade.
Aliás, um parêntese é que o mundo da barbielandia transformado por Ken é mais ou menos o mundo em que os “red pills” adorariam viver. Só há amor entre os homens.
O filme só derrapa e perde um pouco a sua qualidade alegórica em um momento: quando tentam colocar a Matel na história. Imagina que a Greta Gerwig e o Noah Baumbach chegaram com o roteiro e os executivos disseram “tá bom, agora faz uma parte sobre a Matel aí e coloca na história”. E bom, foi o que tivemos. Aquelas partes ali simplesmente não dizem nada na história e só simplesmente estão ali. São o Ken da barbielandia no filme da Barbie. Só existe e pra ser sincero não merece nem discussão.
Uma parte da crítica atribui o tema “morte” ao filme. Faz sentido já que é este o pensamento que coloca em risco toda a perfeição do mundo de Barbie. Dentro de um mundo “perfeito” não há dor, então obviamente não há morte. Filosoficamente isto dá uma discussão interessante. Como saber o que é felicidade sem saber o que é tristeza? Como saber o que é sentir prazer sem saber o que é doloroso? Como saber o que é perfeição sem saber e ter como parâmetro aquilo que é imperfeito? As Barbies tem contato com a imperfeição de modo superficial por conta de uma “Barbie Estranha” (Kate McKinnon) e é mais em relação ao fato dele ter sido danificada ao brincar “duramente” com uma criança. De modo que, como parece todas as Barbies serem imortais, como elas podem pensar/saber sobre o que seria a morte? São muitas as questões que permeiam o filme e há muito o que se tirar dele.
É óbvio que o filme não é revolucionário e acredito que ninguém que é sério pensou que o filme seria isso. Mas a verdade é que é uma obra divertidíssima e que toca em assuntos relevantes e importantes na nossa sociedade, principalmente pensando no público que vai assistir ao filme. Talvez este seja o motivo da maioria das críticas negativas ao filme terem sido escritas por homens? Não querem (consciente ou inconscientemente) que as estruturas não mudem. Não sei, mas apostaria que sim.