O cinema é político. No horror não é diferente, e na verdade é daí que vem a minha certeza da frase anterior. Sobretudo pelas últimas incursões pelo gênero por cineastas como Gabriela Amaral Almeida, Juliana Rojas, Anita Rocha da Silveira entre outros. Mas estas cineastas parecem não só compreenderem melhor como o cinema pode se utilizar de uma narrativa de horror para contar uma história política dos nossos tempos, como também conseguem colocar nas telas diversas das angústias e situações que passamos e vivemos no nosso cotidiano.
Destaco dois momentos políticos do nosso país e que foram reencarnados nas telas do cinema de terror: o golpe de 2016, orquestrado pelos cidadãos de bem e que podem ser resumidos na figura do armamentista, defensor da família e do seu próprio negócio, preconceituoso e homofóbico Inácio, do filme O Animal Cordial de Gabriela Amaral Almeida. E agora, com Medusa de Anita Rocha da Silveira nós vemos o resultado de uma agressividade e conservadorismo de religiosos que só foram crescendo ao longo dos últimos anos.
É praticamente impossível você olhar as cenas do filme e não reconhecer duas ou três pessoas que estiveram na mídia e que se encaixam facilmente naqueles personagens. Impossível também não reconhecer os discursos que, mesmo aumentados até as últimas consequências, poderiam ser proferidos nos canais de televisão e nas redes sociais.
Mas, Medusa conta o que, afinal? Basicamente é a história de algumas meninas que fazem parte de uma igreja. Durante o culto são o exemplo de mulheres religiosas, todas bem arrumadas e obedientes aos homens daquele espaço e possuem uma admiração e uma serventia ao pastor Guilherme (Thiago Fragoso). E durante a noite elas saírem em busca de pecadoras para bater até que elas se arrependam dos seus pecados. Literalmente a materialização do discurso de “eu corrijo na porrada”. Estas mulheres são chamadas de “as preciosas”, são comandadas por Michelle (Lara Tremouroux), uma espécie de “rainha influencer” entre as meninas.
Além de Michele, temos a Mari (Mari Oliveira) que é quem acompanhamos mais durante todo o filme. Vemos na personagem de Mari não só uma devota da igreja e daquele culto, mas também uma pessoa complexa que está em conflito consigo mesma. Principalmente quando em um dos ataques das preciosas ela tem o seu rosto cortado por uma das mulheres que estava perseguindo. Parece que o corte não foi apenas no rosto dela, mas na própria vida de Mari.
Todas essas questões parecem se misturar com uma fé punitivista. Todos aqueles que não estão dentro dos preceitos da fé devem ser punidos. É isso que faz os homens sarados e bombados que se amam e amam mais uns aos outros do que qualquer coisa e são chamados de “Vigilantes de Sião”. E é essa fé punitivista que faz as meninas idolatrarem uma figura que antes delas ateou fogo contra o rosto de Melissa (Bruna Linzmeyer), uma “mulher do mundo”. O pecado, para essas personagens, deve ser lavado com sangue, soco e fogo.
Aliás, uma parte interessantíssima que o filme busca trazer é a diferença entre a aparência e a realidade da vida daquelas pessoas. Uma cena que pode servir de exemplo para isso é quando Michele está tentando ensinar as suas seguidoras da internet a passar maquiagem em machucados, logo após uma desavença com a sua modelo/amiga/Mari e ela fica sozinha, vemos que ela está utilizando aquela técnica que está tentando ensinar. E com as interações anteriores com o seu namorado podemos entender que isso aconteceu por ela ter sido agredida por ele.
O final do filme também demonstra um pouco disso e vai além. mas não cabe aqui descrever ele aqui.
Assistindo ao filme me pareceu vislumbrar um futuro que passamos perto de vivenciar. Uma teocracia violenta tão próxima da nossa realidade que quase tocamos. São discursos que, mesmo saídos de um filme de ficção, poderiam e são encontrados em falas, discursos e situações da nossa própria realidade. Esse, talvez, seja o elemento mais assustador desse filme de horror.
No mais: Medusa é mais um exemplar de como o cinema, principalmente o brasileiro, capta as situações, os discursos e o contexto social e político. É também um exemplar de como o cinema de horror é o melhor gênero para conseguir traduzir para as imagens os anseios e as angústias da nossa vida e do nosso tempo.