Começo este texto de forma bem pessoal: o meu filme brasileiro favorito dos últimos anos é “O Animal Cordial” da diretora Gabriela Amaral Almeida. Esse filme representa tantas coisas de formas tão simples e didáticas que eu não consigo pensar em outra resposta quando me perguntam sobre o filme nacional que eu mais gosto. O filme mostra desde os preconceitos de uma classe média emergente, até uma resposta/resistência dos oprimidos. Tudo isso dentro do espaço/tempo de uma noite em um restaurante.
Estou lendo o livro “Cinema brasileiro hoje” do Pedro Butcher onde ele fala sobre os filmes brasileiros produzidos nos anos 90, período da retomada após o fim da Embrafilme. Na introdução do livro ele faz perguntas que são pertinentes aqui neste texto: “O que faria o cinema brasileiro ser brasileiro? Existe um conjunto de filmes capaz de expressar um país inteiro?” A essas perguntas, respondo que “O Animal Cordial” consegue expressar facilmente o período em que foi produzido.
O filme foi lançado em 2017 e aqui vai uma breve contextualização histórica. 2010 foi o ano em que tivemos a primeira eleição da presidente Dilma Rousseff. Em 2014 quando tentou a reeleição vimos uma grande disputa ideológica, mas que por fim acabou com a reeleição da então presidente. Em 2016 começamos a ver diversos atos pelo país com uma parte da população vestida com as cores da bandeira do país e se autoproclamando “cidadãos de bem”. E é aqui que eu encaixo o filme de Gabriela Amaral Almeida.
Basicamente o filme se passa em um único ambiente: o restaurante de Inácio (Murilo Benício), que tem um complexo de superioridade e inventa mentiras para que as pessoas façam o que ele quer. Não é honesto. Nem consigo mesmo e nem com os outros. Não respeita ninguém, quer apenas a subserviência de todos os que trabalham com/para ele. A monotonia do restaurante é quebrada pela chegada de dois assaltantes. Mas Inácio, como “bom cidadão”, está armado e consegue alvejar um deles. No entanto, em vez dele chamar a polícia, ele decide sequestrar todos que estão no restaurante (entre funcionários e clientes) e fazer daquele salão um palco de horror.
É importante destacar que esse período foi marcado por um enorme preconceito contra pessoas minorizadas. Podemos ver a representação dessas pessoas em Djair (Irandhir Santos), o cozinheiro. Uma das cenas mais fortes do filme é a discussão entre Djair e Inácio, onde o cozinheiro olha bem para o seu patrão e diz que toda a implicância que ele sofre ali é pelo motivo de Inácio ter problemas diretamente com ele ser quem ele é.
As representações não param por aí. A personagem Sara (Luciana Paes) faz o papel daquelas pessoas que são exploradas e mesmo assim, por conta de uma certa ganância de estar no poder e ilusões acerca do seu patrão, se volta contra o seu próprio povo, mesmo que isso seja perigoso e errado.
O Brasil todo está representado naquelas quatro paredes que compõem o restaurante. As motivações que levam Inácio a fazer tudo que fez podem ser lidas desde um ato de maldade, até a falência da sociedade brasileira ali instaurada. Uma sociedade que produz desigualdades sociais, que consequentemente gera uma onda de crimes – Inácio diz que aquela não era a primeira vez que o restaurante havia sido assaltado – e não pune os responsáveis por cometerem os crimes – ele também comenta que em todas as vezes o máximo que aconteceu foi o restaurante ter ficado fechado e ele ter perdido clientes. “O Animal Cordial”, muito bem representado por Inácio, é o reflexo de uma sociedade desigual, misógina e machista.
No entanto, e aqui vai o que mais gosto desse filme, o final é libertador e revolucionário. Não no sentido de inovação técnica – apesar de sim, a cena ser muito boa e a Gabriela Amaral Almeida conseguir conduzir essa cena como uma grande autora do cinema que ela é – e sim no sentido dos sobreviventes de toda essa noite. Para mim foi quase uma mensagem de: “bom, foi tudo muito difícil, mas sabemos realmente qual é o lado certo da história”. Mostrou que sim, por um lado “O Animal Cordial” é o reflexo de uma sociedade desigual e machista, mas há solução, e ela vem dos oprimidos.
Texto originalmente publicado na coluna Mundo Fantástico na página do Cinefantasy no dia 15 de novembro de 2021.