Um assunto que tem rondado os meus pensamentos nos últimos dias é sobre a construção e prática da nossa cinefilia. Quais filmes e quais autores do cinema estamos escolhendo para assistir? Quais são os filmes que estamos escolhendo para escrever e dar uma vida maior através dos textos, análises e discussões? Penso que, querendo ou não, quando fazemos essas escolhas estamos dizendo muito sobre nós mesmos e sobre o cinema que gostamos, queremos e defendemos que exista.
Quando escolhemos, por exemplo, escrever uma notícia ou uma crítica sobre o blockbuster do momento, que lota praticamente todas as salas e horários das sessões do cinema, ao invés de darmos atenção ao filme nacional que teve praticamente que lutar uma guerrilha para chegar até onde chegou é uma escolha que parece dizer que aquele cinema é mais importante do que o feito aqui, no Brasil. Vou um pouco mais além, para dizer que o problema é ainda maior. Escolher falar sobre o mais novo filme do velho ícone do cinema faroeste no lugar de falar de um filme dirigido por uma mulher, por exemplo, é problemático. Nesse sentido tomo emprestado o título de um texto do Heitor Augusto para fazer uma pergunta: problema só dos filmes ou também somos nós?
Não estou querendo impor sobre qual filme ou qual assunto um crítico deve escrever. Defendo aqui que precisamos nos reinventar nos debates e nas discussões e que sim, em alguns momentos considero mais importante falar sobre um filme nacional que trata sobre as nossas questões do que o mais novo filme de herói ou do Clint Eastwood. Acredito na crítica como uma forma de intervenção cultural – e nesse sentido recomendo os textos de Paulo Emílio Sales Gomes e Jean Claude Bernardet para entender melhor o que estou querendo dizer com isso – e que dialoguem com nosso cinema, seja pautado pelo nosso cinema e não pelo que vem de fora e pelas grandes corporações.
Essa introdução toda foi para falar sobre o tema desta coluna: Zózimo Bulbul. Está acontecendo, não sei por quanto tempo, uma retrospectiva do cinema dele na plataforma de streaming do Itaú Cultural e é um bom momento para falarmos sobre este autor do nosso cinema.
Zózimo Bulbul cansado de interpretar os mesmos papéis nos filmes decide começar a dirigir ele mesmo as suas histórias. Assisti a “Alma no Olho” de 1974 e me surpreendi com tamanha beleza e significação que um homem em uma tela pode conter. No curta nós vemos Zózimo, como uma alma – um elemento fantástico/humano -representando parte da história negra do Brasil. Desde o encarceramento até a libertação, feita pelo proprio povo negro. Inclusive essa ideia da libertação é tema do seu longa “Abolição”, feito em 1988.
A história é um tema importante na cinematografia de Zózimo, abordada tanto de forma experimental, como foi o caso de “Alma no Olho” e de forma documental como é o caso de outros curtas e médias como, “Pequena África” e “Aniceto Dia de Alforria” que tratam da história cultural e da presença negra na construção do Brasil. Mostra, inclusive, que o Brasil que conhecemos hoje não seria possível sem as diversas contribuições de pessoas negras. Zózimo tem uma noção muito clara da importância da história, em seu média “Referências” traz um debate enriquecedor com cineastas importantissimos do cinema negro do nosso país.
A retrospectiva vem em boa hora, o cinema de Zózimo Bulbul precisa não só ser mais revisitado e discutido pela crítica brasileira, como também por boa parte dos cinéfilos e toda a população em geral. É uma mistura de experimentação, poética e política, do fantástico ao documental. É um cinema que precisa ser visto.
Texto originalmente publicado na coluna Mundo Fantástico na página do festival Cinefantasy no dia 22 de Novembro de 2021.