Se alguém me pedisse para indicar somente um livro sobre o cinema brasileiro sem sombra de dúvidas eu indicaria o livro do Jairo Ferreira “Cinema de Invenção”. O livro trata do cinema marginal, de invenção ou udigrudi e é escrito por uma pessoa que esteve literalmente ali vivendo, escrevendo e fazendo esse cinema.
Decidi começar falando do livro do Jairo, pois o cineasta que falaremos hoje é um dos abordados neste célebre livro, Rogério Sganzerla, o autor do clássico filme “O Bandido da Luz Vermelha”. Que conta a história do bandido da boca do lixo que aterroriza a vida dos moradores da cidade de São Paulo.
Sganzerla era o melhor crítico de seu próprio cinema e quero partir de algumas palavras dele. Quando lançou “O Bandido…” ele escreveu um manifesto sobre o filme e que foi reproduzido na íntegra no já citado livro do Jairo, Sganzerla diz: “Fiz um filme voluntariamente panfletário, poético, sensacionalista, selvagem, mal comportado, cinematográfico, sanguinário, pretensioso e revolucionário. Os personagens desse filme mágico e cafajeste são sublimes e boçais. Acima de tudo, a estupidez e a boçalidade são dados políticos, revelando leis secretas da alma e do corpo explorado, desesperado, servil, colonial e subdesenvolvido. Meus personagens são, todos eles, inutilmente boçais, aliás como 80% do cinema brasileiro; desde a estupidez de Corrisco à cretinice do Boca de Ouro, passando por Zé do Caixão e pelos atrasados pescadores de Barravento…”
Tudo o que Rogério Sganzerla fala é o que o filme dele tem. É um filme poético e sensacionalista, que faz referência aos programas radiofônicos do período, mas que também pode ser visto nos jornais sensacionalistas de hoje. Mostra, aliás, que muita coisa ainda continua a mesma desde antes dos anos 60. A cobertura do jornalismo policial ainda é feita por pessoas que sobrevoam tragédias como abutres procurando carne. O filme é mal comportado em estilo, é filmado da forma que o diretor quis e montado da forma que ele sentiu vontade. Essas escolhas são vangloriadas pelo próprio Sganzerla e o fato de ele entender o que realmente é o que faz “O Bandido da Luz Vermelha” ser esse clássico incontestável que ele é. E vale lembrar que ele tinha apenas 23 anos quando filmou este filme.
O fato dele considerar não só os seus personagens de cinema, como também da maioria dos personagens como boçais e imbecis e que isso é um dado político, é uma posição demarcada do autor e que precisa ser destacada. Ele não para por aí, ele correlaciona essa imbecilidade ao fato do país ser colonial. Aí está o político.
O filme tinha um grande elenco, Paulo Villaça, Helena Ignez entre outros. Mas Sganzerla não queria ler obviedades sobre o seu filme. Quem os atores estavam ótimos era claro. Seu cinema ser referencial ao Welles e Godard, idem. Ele dizia que queria uma crítica inventiva ao seu filme. “Falem da minha dívida a Mojica, que vocês detestam, por exemplo”, escreveu ele em uma nota. Ele tinha uma ideia muita clara do que era o cinema e de onde ele estava produzindo. Durante todo o filme ouvimos os locutores da rádio falando sobre viver no país de terceiro mundo, que é o que vivemos. Sganzerla sabe que produz cinema em um país subdesenvolvido e não tenta esconder.
O cinema de Rogério Sganzerla é um caminho incontornável para qualquer cinéfilo, crítico ou cineasta brasileiro. Assim como seus textos. O cinema da boca do lixo, o cinema de invenção, o cinema marginal é a definição que eu mais gosto de o que é cinema. Dizem que ser diretor é resolver problemas, nesse cinema vemos que ser um cineasta é inventar soluções. Cinema é invenção (desde sempre, aliás).
Uma última observação, para quem quiser ver ou rever os filmes de Sgarzerla, alguns de seus filmes – incluindo “O Bandido da Luz Vermelha” – estão disponíveis na plataforma de streaming Itaú Cultural .
Texto originalmente publicado na coluna Mundo Fantástico na página do Festival Cinefantasy no dia 06 de Dezembro de 2021.