Em 2016 muitos estudantes do Brasil ocuparam suas escolas lutando por melhorias na educação pública. “Cabeça de Nêgo”, filme do Déo Cardoso usa desse cenário de jovens estudantes lutando para misturar duas questões necessárias para os dias de hoje. Por um lado mostra a importância de se lutar por uma educação de qualidade e, do outro, combater o racismo estrutural presente na nossa sociedade.
Saulo (Lucas Limeira) é um aluno da escola pública e em um dia durante uma aula ele sofre um ato de racismo de um colega da sua classe, quando revida e o professor vê isso acontecendo ele decide punir Saulo mandando-o para fora da sala. Como ele se recusa a sair o diretor é chamado e fica claro que ele pretende expulsar o aluno. E isso principalmente por Saulo fazer parte do grêmio e movimentar a escola politicamente. Se recusando a sair o estudante então decide ocupar a escola, levando todos a questionarem o protagonismo jovem e as condições da escola e educação pública.
Há muito o que se falar sobre o filme de Déo Cardoso e o primeiro assunto que eu quero destacar aqui é a importância de discussões sobre as figuras históricas negras. Quem vive em São Paulo está acostumado a esbarrar com monumentos de figuras controvérsias da história brasileira. Seja os bandeirantes que massacraram os indígenas ou por pessoas que escravizaram as pessoas negras. Além de nomes de ruas e escolas homenageando militares dá época da ditadura militar. Vale lembrar, nesse sentindo, que muita gente conhece a figura da Princesa Isabel e a coloca como redentora das pessoas escravizadas e, ao mesmo tempo, nunca ouviu falar de Luiz Gama. “Cabeça de Nêgo” está desde o seu primeiro minuto resgatando a memória de personagens importantes da nossa história, desde Zumbi dos Palmares, passando por Lélia Gonzalez e chegando até ao de Marielle Franco.
O contato de Saulo com essa bibliografia é o ponto de partida de toda a sua manifestação. Isso é um exemplo de como o acesso a educação é uma arma de mudança de uma sociedade estruturalmente desigual. Ele só é quem ele é graças a suas leituras e experiências de vida, graças aos contatos e incentivos de professores e pessoas que não só acreditam no potencial dele, mas também incentivam que ele continue crescendo e sendo quem ele é.
Um dos momentos mais interessantes é a cena de discussão sobre a ocupação na sala dos professores. Por um lado temos professores que reproduzem as falas dos conservadores que querem manter as coisas como estão e criminaliza qualquer um que lute para mudar as estruturas. É isso que ouvimos dessas pessoas – e foi também o que ouvimos lá em 2016 -, que Saulo e os estudantes são vagabundos e criminosos e que aquela ocupação é errado e que o aluno tem que ser expulso. Punindo por ter reagido a um ato de violência social e racial. Do outro lado temos apenas duas professoras que defendem o estudante, como vozes solitárias em um antro de pessoas maldosas.
As cenas finais intensificadas pelas atuações dos jovens atores são de tirar o fôlego. Qualquer pessoa que já esteve presente ou já observou uma manifestação sabe o tamanho que é o medo daquele lugar se tornar um campo de guerra. O medo da repressão. Pouco a pouco a sensação de que algo vai dar errado vai crescendo e nós enquanto espectadores só temos como ficar olhando e torcendo para aquelas pessoas ficarem bem.
Todas aquelas personagens nos fascinam e chega até a ser triste o filme não ter desenvolvido algumas questões e pessoas. Como é o caso de Clarisse (Nicoly Mota) que é de uma potência tão grande que só de aparecer no quadro já nos toma toda atenção. Também senti que poderia ter sido abordado de forma mais direta a correlação entre a falta de escola na vida das pessoas e a entrada dessas mesmas pessoas na vida do crime. No entanto, isso que o filme poderia ter sido não muda em nada o que de fato o filme foi, um retrato preciso de uma realidade dura e muitas vezes ignorada por quase toda a sociedade.
O filme de Déo Cardoso é um filme político – e quero perguntar aqui: todos não são? – e esse é o ponto principal e o que faz “Cabeça de Nêgo” ser tão bom quanto ele é. Me coloco em um lado totalmente oposto ao texto de Eduardo Escorel, onde ele coloca a politicidade do filme como um demérito. Respeito a trajetória de Escorel, um dos mais importantes montadores da história do nosso cinema, mas o texto dele está errado quando diz que o filme “começa a ratear à medida que o ato político se sobrepõe ao ato estético”, parece que o Escorel não entende que é aí onde está estética do cinema de Déo Cardoso. É no político que Déo Cardoso transforma imagens em cinema. É na visão de mundo dele onde realiza toda a sua linguagem.
Sempre que vejo alguém falar que um filme é “panfletário” isso me deixa com uma pulga atrás da orelha querendo entender o que isso significa. Me parece, na verdade, um tipo de acusação sobre falas e vozes que não estão com vontade de dar ouvidos no momento. Algo do tipo: “não quero ouvir falar sobre isso, você ainda está falando? Para de ser panfletário”. Fez sentido? Não sei. É o que me parece.
“Cabeça de Nêgo” mostra que a força de mudança está na juventude. É um filme sobre essa mudança e essa fagulha de esperança. É um filme sobre luta.
Queria tanto ter assistido, masnão consegui.Mas essa discussão entre o político e o estético héin? Gera pano para manga!