Continuando minha série de entrevistas com críticos de cinema, hoje eu converso com a pesquisadora, crítica de cinema e escritora Maria Caú. Ela faz parte da ABRACCINE e é uma das editoras do site criticos.com.br, outro site que levo como um dos grandes referenciais para mim enquanto crítico.
Se vocês querem conhecer o trabalho da Maria Caú eu recomendo muito que acessem o site do Críticos e leiam os textos dela lá, todos são excelentes. Outro objeto de estudo da Caú que eu particularmente gosto bastante de ler e acompanhar é sobre o cinema de Wood Allen, ela inclusive deu uma entrevista sobre o diretor no Cultura em Pauta, assista aqui.
Além de seu trabalho com o cinema Maria Caú também escreve poemas e está com o seu ultimo trabalho disponível no site da Livraria Travessa, e você pode comprar o livro clicando aqui.
ENTREVISTA
Euller Felix: Hoje você é uma das editoras do site Críticos, que é uma referência na crítica brasileira, pode contar para a gente um pouco dessa experiência?
Maria Caú: É um pouquinho surreal, não vou mentir. Eu passei meus primeiros anos em Araruama, uma cidade da Região dos Lagos do Rio de Janeiro, que tinha uma única sala de cinema, que fechou definitivamente quando eu tinha 13 anos. Eram os anos 1990 e querer fazer cinema parecia para as pessoas com as quais eu convivia uma grande loucura. Nessa época, eu já via o Marcelo Janot (editor-chefe do Críticos) na televisão, nas apresentações que ele fazia no Telecine Classic. Depois, quando eu comecei a estudar Cinema, o Críticos era um dos sites que eu mais lia, junto com a Contracampo e alguns outros. Ele entrou no ar em junho de 2002, um mês depois que eu comecei a cursar a faculdade de cinema (atrasada por conta de uma greve), então é de certa forma um veículo bastante pioneiro nesta seara, e já tem quase vinte anos. Por ele passaram nomes importantes da crítica e o acervo do site tem coisas de fato incríveis, e merece ser revisitado sempre. Por isso que eu digo que é um pouquinho surreal estar entre os editores do Críticos, ao lado do Janot e do Luiz Fernando Gallego, dois críticos com uma estrada bem mais longa que a minha e que hoje são amigos queridos. A vida às vezes vai soprando nas velas do nosso barquinho.
Veja bem, eu comecei a escrever críticas em 2004, com 21 anos, em um pequeno jornal impresso da minha cidade, porque o editor me perseguiu e me fez o convite incessantemente, até que eu aceitasse o trabalho. Nós, mulheres, somos educadas para acreditarmos que não estamos preparadas para nada, que precisamos estudar mais, que ainda não é a hora. Nunca é a hora. Eu me achava muito jovem, achava que eu tinha que ler mais e assistir a filmes a que ainda não havia tido acesso para escrever. Eu achava que tinha que ver todos os filmes do mundo, ler todos os livros do mundo, fazer todos os cursos do mundo. Então, eu agradeço a esse editor, o Paulo do Couto, por ter insistido. Ele viu alguma coisa em mim. Escrevi por mais de cinco anos para este jornal, de graça mesmo. Naquele microcosmo de Araruama eu não precisava provar nada para ninguém, eu já era a menina do cinema desde os meus catorze ou quinze anos, quando eu passava todo meu tempo livre andando pela locadora e conversando com as pessoas sobre filmes. Já na faculdade de cinema, eu não tinha nenhuma abertura para andar com a galera da crítica, que era um grupo bem fechado para mulheres.
Eu sinto que, por conta da falta de representatividade feminina na crítica, eu tive que fazer um caminho bem tortuoso desde esse jornal de Araruama (que se chamava O Principal) até o Críticos. Fui para área acadêmica, fiz Mestrado e Doutorado na UFRJ, estudando cinema e literatura, e aí fui voltando aos poucos. Primeiro fiz algumas colaborações em outros sites, passei um tempo no Delirium Nerd e, cruzando com Gallego numa cabine, fui chamada por ele para escrever algo para a seção de Convidados do site. Depois disso foi tudo bem rápido, virei colaboradora fixa e logo depois editora, em 2019, logo antes da pandemia. Fizemos dois dossiês logo antes disso e estávamos com algumas cartas na manga, muitas das ideias também vêm do Luiz Baez, um superjovem da crítica (acho que ele tem só 25 anos) que eu logo trouxe para junto da gente porque vi o enorme potencial que ele tinha.
A questão é que a pandemia fez a gente adiar essas ações. Parar um pouco, refletir não só sobre o futuro do site, mas sobre o futuro da crítica (e como podemos contribuir com ele). Pessoalmente, em 2020 eu me retirei um pouco. Assistir a filmes recentes era me lembrar de que a experiência da sala de cinema estava fora do meu alcance. E a sala de cinema sempre foi a minha terapia principal (e olha que eu faço análise duas vezes na semana há oito anos). Eu costumava dizer quando eu estava mal: “Vou me internar no cinema”. Então eu fiquei um tempo só revendo filmes e seriados antigos, vendo séries documentais e escrevendo muito pouco. Fugi um pouco de festivais online porque, naquele período, eles me causavam muito estresse emocional. Fiz diversos cursos online sobre cinema, mas não escrevi muito. Agora, em 2021, estou colocando um pé no chão de novo. E pensando em como ainda posso contribuir para o Críticos e para a crítica em geral.
Euller Felix: Você além de crítica também é pesquisadora, qual a diferença que você vê entre, por exemplo, a crítica que você faz no site das pesquisas e artigos acadêmicos? E qual é a importância de ambos os formatos?
Maria Caú: Eu acho meio antiquado que ainda exista uma querela entre a academia e a crítica de cinema. Quando eu estava voltando para a crítica, um certo crítico renomado na época costumava querer me descredenciar dizendo que eu não era crítica, mas apenas uma pesquisadora. E eu ria porque eu não conseguia entender como, na cabeça deste senhor, um doutorado tratando de cinema poderia ser menor que um blog opinativo em tom de homem ferido que briga pelo cinema do passado.
Eu acredito que a academia e a crítica deveriam estabelecer um diálogo mais estreito. Há grandes acadêmicos na Abraccine e cada vez mais eu acho que as pessoas estão passando a ver essas atividades como complementares. Agora, quando você me pergunta qual a diferença entre uma crítica e um artigo acadêmico… Bom, um artigo tenta se fiar ao método científico, embora as pessoas tenham dificuldade de imaginar como o método científico possa ser aplicado às Humanas. Basicamente, num artigo acadêmico você idealmente não se coloca como a voz absoluta da autoridade, você toma parte em um diálogo que você reconhece que teve início muito antes de você. Por isso mesmo as referências, a bibliografia, as citações constantes; e por isso em geral o discurso não é tão autoritário e não soa tão definitivo – ou ao menos o ideal é que não o seja. Você diz: aqui está a minha contribuição para essa conversa, eu vim do lugar tal e tal, eu li os autores tais e tais e aqui coloco o que trouxe de novo. Basicamente, você puxa sua cadeira e senta à mesa, humildemente, pronto para ouvir e debater. É até irônico que o discurso da crítica soe muitas vezes mais autoritário que o da academia, que envolve um trabalho obviamente muito mais aprofundado. Eu acho que isso é algo que a crítica poderia (e deveria) aprender com a pesquisa acadêmica.
Outro dia eu estava conversando com um crítico de cinema que eu admiro muito, um cara que tem uma estrada enorme, e eu comentei com ele que eu não escrevia para convencer quem me lia, mas sim para participar de um diálogo sobre filmes, e ele se espantou, dizendo que ele escrevia sim para convencer. Eu não acho que é esse o meu papel como crítica e inclusive fico muito feliz quando alguém discorda do meu texto, mas ainda assim diz ter achado meu ponto de vista bem fundamentado. Me assusta que as pessoas queiram que seus pontos de vista sobre cinematografias sejam verdades cristalizáveis.
Também é verdade que há uma desvalorização muito grande do trabalho especializado na área da crítica de cinema, muito grande mesmo. Hoje em dia qualquer um se autointitula crítico sem a mais vaga formação na área – e eu não falo de estudo formal não, eu falo de minimamente compreender o campo dos Estudos de Cinema. Eu tenho pouca tolerância para essa ideia de que é só sentar e ver filmes e filmes em números volumosos (vibe Laranja mecânica) para automaticamente se transformar de cinéfilo em crítico. Claro que é importante assistir a filmes, mas não é uma competição por números e comentários no Letterboxd ou nas redes sociais que desenvolve o pensamento crítico sobre cinema.
Resumindo, acho que a academia ganharia com essa capacidade da crítica de fazer movimentar a reflexão sobre cinema de forma mais ágil, rápida e menos presa a um formato delimitado e pouco afeito a experimentações. Mas a crítica tem muito a aprender com a academia também. Essas atividades se cruzam e muitas vezes se fundem. E que bom.
Euller Felix: Para você, qual a função da crítica de cinema?
Maria Caú: Para mim, a crítica tem por objetivo maior facilitar o diálogo entre os realizadores e o público de uma obra. Ela acaba sendo um documento histórico muito importante também, que retrata como um filme (ou qualquer obra de arte) foi recebido num dado momento e num certo lugar (e, claro, por uma certa pessoa, porque eu não trabalho com a pretensão de ter um olhar totalmente imparcial sobre nada; acredito, ao contrário, que a gente deve estar ciente dos limites do nosso olhar, do quanto ele por vezes pode estar “programado” – e estar ciente é uma forma de tentar desviciar o olhar quando necessário). E também atuar chamando atenção para obras e realizadores que poderiam passar despercebidos ou não vêm recebendo a atenção que você acredita que eles merecem. É também muito valoroso fazer um trabalho mais histórico, no sentido de revisitar filmes antigos e pensar na evolução dessas obras ao longo do tempo, como elas são recebidas por novos olhos (sem querer analisá-las como se elas tivessem sido produzidas hoje, claro). Tenho escrito pouco, por causa das pressões da vida e da pandemia, e me sinto muito mais impelida a escrever quando acredito que meu ponto de vista pode contribuir ou nuançar um debate que é muito maior do que eu. O meu desejo é apenas fazer parte dessa conversa.
A foto desse post foi tirada por Ana Katayama Dalloz