É muito difícil ligar a televisão e ver obras que retratam o período colonial, pessoas negras escravizadas e membros da monarquia retratadas como pessoas de bom coração, que “apesar de escravizar” são boas pessoas. O romance da monarquia vende. Personagens pobres? Só os cômicos que estão ali para fazer o público rir de cena em cena. Qualquer pessoa que estudou pelo menos uma página dos livros de história sabe que aquela dramatização é irreal, principalmente no tratamento dos representantes da monarquia com o povo. Os defensores desse tipo de obra pode falar “mas é uma história de ficção, não é para levar a sério”, para esses eu respondo: qual o sentido de fazer uma obra sobre um período histórico importante do Brasil se não for para para dramatizar esses fatos? E se for fazer uma ficção, qual o motivo de sempre colocar os negros em situação inferior? Juro que não entendo.
Talvez o motivo de eu ter gostando tanto do novo filme de Jeferson De, “Doutor Gama”, pelo motivo dele mostrar o povo negro resistindo de verdade e não dramatizando e fazendo com que as pessoas brancas e principalmente monarquistas sejam passadas boazinhas e que só tem e vive com pessoas escravizadas pois é o período em que vivem.
Quando o filme começa vemos Luiz Gama (Cesar Mello) olhando diretamente na câmera, falando com nós que estamos assistindo, o quanto aquele sistema em que todos eles vivem é prejudicial as pessoas, que os brancos escravizam e maltratam os negros e que qualquer coisa que saia daí é resultado desse mal. O contexto dessa frase de abertura de Gama é que ele está em um tribunal defendendo uma pessoa escravizada que matou o seu senhor. Esse discurso no início do filme e a parte final, que é a complementação dessa fala são as partes mais fortes do filme, funcionam como uma espécie de falas do passado dialogando com o presente e os acontecimentos que vivemos.
Lembro de quando saiu “Corra!” do Jordan Peele muitas pessoas citaram que o filme possui um final alternativo, onde o personagem de Daniel Kaluuya acaba sendo preso depois dos assassinatos que ele comentou para conseguir escapar daquela família que tenta novamente dominar o corpo negro. Esse final não foi para frente – ainda bem – principalmente pelo motivo de que ninguém queria ver um filme feito por negros onde o resultado seria novamente o personagem negro se dando mal. Confesso que esse era um medo que tive ao assistir “Doutor Gama”. Medo de que algo fosse acontecer com o advogado, medo que a pessoa que estava sendo acusada realmente fosse morresse. O medo esteve comigo durante todo o filme.
Além de ser um filme que conta a história de uma figura histórica de grande relevância para a nossa história é também um filme de tribunal. Sabemos que nesse tipo de filme pouco importa quem está ao lado da verdade, quem é o inocente ou o culpado, o importante é quem consegue melhor convencer. Luiz Gama está na frente de todas as pessoas ali tentando convencer não só que seu cliente é inocente, mas que ele também é uma pessoa. Mesmo que todos ali digam o contrário, mesmo que haja um advogado (Erom Cordeiro) representante do estado e monarquista convicto dizendo que não, aquela pessoa não é um ser humano e sim um monstro. Aliás, esse advogado se chama Pedro, mas parece estar representando toda uma parcela da sociedade que ainda tem os mesmos ideais e pensamentos que os do século XIX nos dias de hoje. É bem provável que você, caro leitor, já tenha conhecido, esbarrado, ou lido comentários de vários “Pedros” na sua vida nas redes sociais.
Inclusive podemos correlacionar “Doutor Gama” com o filme anterior de Jeferson De, “M8: quando a morte socorre a vida”. Os colegas da turma de medicina de Maurício (Juan Paiva) que se recusam a vê-lo como uma pessoa, que se recusam a aceitar que ele está lá na mesma sala que eles como um aluno, são basicamente uma extensão de “Pedro”, a materialização daquele preconceito e daquele pensamento nos dias atuais.
Um filme pode ser bom e não ser relevante socialmente. Um filme pode ser relevante socialmente e não ser bom. “Doutor Gama” consegue ser bom e relevante. Discussões pertinentes podem ser levantados através de suas cenas, estas que foram muito bem filmadas e organizadas por Jeferson De. É um filme necessário pela sua temática e abordagem e bom pelas suas questões técnicas e de escolha. Enfim, “Doutor Gama” é um grande filme.