Pensei no que deveria abordar neste primeiro texto da minha coluna aqui no Cinefantasy e bom, nada melhor do que utilizar o filme que abriu a décima edição do festival, que aconteceu no ano passado, “O Cemitério das Almas Perdidas”, épico de Rodrigo Aragão. Muito já foi falado sobre o filme, sobre suas qualidades técnicas, as atuações e as qualidades da história, hoje vou buscar uma abordagem diferente, tentando fazer uma conexão entre a obra e o quanto esse filme representa em alguma medida a realidade brasileira.
A obra é movida pelas ações dos personagens que fazem parte do circo “Mausoleum” que enfrentam as dificuldades que é viver de cultura no Brasil nos dias de hoje, enfrentando longas jornadas e horas de estradas para encontrar um bom lugar para conseguir fazer uma apresentação rentável do circo.
Em certa medida da história também vemos o quanto a intolerância religiosa é nociva e hipócrita. Afinal, ao mesmo tempo em que os ditos religiosos perseguem aqueles que julgam estar do lado do “mal”, praticam um ato de extrema maldade quando entregam os trabalhadores do circo para morrer. Além de terem feito um pacto com o que podemos considerar como a própria expressão do mal.
Todos esses pontos levantados pelo filme podem ser lidos como reflexos da realidade em que vivemos, seja na questão da dificuldade em relação às atividades artísticas, como por exemplo, os diversos ataques que os setores culturais vêm sofrendo nos últimos anos. Seja na questão da perseguição religiosa que pessoas e religiões diversas, principalmente as que fazem parte de matrizes africanas sofrem no dia a dia. E claro, podemos ler as ações dos religiosos no filme como algo bem semelhante ao que acontece com o discurso de ódio que vemos ser proferidos e amplamente encorajado por pessoas que fazem parte de uma bancada política religiosa, ou por pessoas muito ou pouco famosas que atuam como influenciadores e formadores de opinião e disseminam o ódio sob o pretexto religioso.
Rodrigo Aragão conseguiu fazer um filme inteiramente brasileiro, desde sua proposta, sua história, seus conflitos e suas reflexões. Demonstra através de uma narrativa fantástica o quanto a sociedade brasileira dos dias de hoje é reflexo das ações do passado, e de quanto a identidade que temos hoje é construída pela nossa história e pela relação que temos com ela.
Texto originalmente publicado na coluna Mundo Fantástico na página do Cinefantasy em 11 de Janeiro de 2021.