Uma das maiores referências da crítica brasileira é a Contracampo, mesmo que o site não esteja mais sendo atualizado. Se você está acompanhando os posts dessa série vai lembrar que o próprio Inácio Araújo citou a revista como referência de uma boa geração de críticos.
O nosso entrevistado de hoje é o Ruy Gardnier, crítico e professor de cinema. Foi também o fundador da Contracampo.
Se você quer estudar crítica de cinema no Brasil, a Contracampo e os textos do Ruy são elementos incontornáveis.
Entrevista
Euller Felix: A Contracampo foi e ainda é uma referência para quem quer estudar crítica de cinema no Brasil. Você pode falar um pouco sobre o contexto em que ela surgiu?
Ruy Gardnier: A Contracampo surgiu num momento em que as pessoas estavam começando a ter um computador pessoal e internet em casa, e considerar isso como algo normal, mais um eletrodoméstico necessário na casa. Mesmo alguns redatores, no começo, não tinham, digitavam no computador de outra pessoa e entregavam em disquete 3 1/2. O sonho de todo mundo era o impresso, e antes da Contracampo houve o Limite, um fanzine que só teve duas edições e por falta de patrocínio (o Júlio César de Miranda da Polytheama foi o único a querer anunciar) não foi adiante. A internet surgia como o meio perfeito para fazer algo que não precisasse de dinheiro e que não dependesse de um artigo atrasado. E também era excelente a sensação de fazer alguma coisa sem precisar ser legitimado pelas gerações anteriores, que víamos com algum pé atrás (os bons, mas que estavam embebidos num ideal de “cinema humanista” que nos parecia limitador e esteticamente frouxo) ou com autêntica repulsa (em especial os que escreviam nos jornais impressos do Rio à época). O Brasil vivia uma espécie de “oba oba” com a assim chamada Retomada, cujos filmes, em geral incipientes e mauricinhos, cheirando a direção de arte de TV ou publicidade, eram elogiados aos quatro cantos. Nosso recorte foi naturalmente se formando em torno dos cineastas brasileiros que amávamos, como Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach, David Neves e Ozualdo Candeias, e que achávamos que jamais tinham recebido a atenção que mereciam, e, em termos de cinema estrangeiro, chamar a atenção para cineastas até então ignorados pela crítica brasileira, como Hou Hsiao-hsien, Takeshi Kitano, Wong Kar-Wai, Tsai Ming-Liang, Darejan Omirbaev, Todd Haynes, que passavam basicamente em mostras, sem entrar em cartaz, e ninguém achava isso um problema. Aliado a isso, a Contracampo sempre defendeu ferrenhamente a crítica como análise estilística e compreensão do filme a partir da linguagem visual e da mise en scène, e sem preconceito com gêneros ditos menores ou menos realistas (terror, comédia, thriller etc.). Se ela é uma referência hoje, talvez seja por conta disso.
Euller Felix: Como você avalia que ainda continue como uma referência para os jovens críticos que estão surgindo (não sou tão jovem, mas me incluo nessa) mesmo que não sendo mais atualizada?
Ruy Gardnier: Considero como uma coisa normal. Minhas influências principais de escrita também eram todas distantes no tempo, Torquato Neto, os irmãos Campos, Glauber Rocha, Jean-Luc Godard, Ezra Pound. Se há algo na Contracampo que não existe nos veículos que vieram posteriormente (influenciados por ela ou não), acho que não cabe a mim dizer, e sim às gerações que vieram depois. Tomara que a influência da Contracampo permita a esses jovens críticos superar a guinada sociológica e culturalista que domina hoje o discurso sobre o cinema e que coloca o talento e a visão única do artista como elementos apenas circunstanciais, focando essencialmente em questões conteudísticas e avaliando as obras a partir de um manual woke de modos e visibilidades.
Euller Felix: Para você, qual é o papel da crítica de cinema? É como enxerga a crítica hoje?
Ruy Gardnier: O papel da crítica é fazer perdurar as obras que são significativas esteticamente, estilisticamente, que são singulares diante de um universo dado, que em termos de expressão não podem ser substituídas por nenhuma outra. É papel da crítica avaliar, selecionar, e pela palavra abrir portas de entrada que permitam aprofundar os conhecimentos e as sensações provocadas pela obra. Quando eu falo de “crítica estilística”, para mim é um pleonasmo, um termo apenas para marcar posição. Porque toda crítica que é verdadeiramente crítica é crítica estilística. Quando a crítica vem associada a um adjetivo, como outrora “crítica psicanalítica”, “crítica marxista”, no fundo é apenas um comentário conteudista a respeito de uma obra à luz de uma doutrina, que eventualmente pode ter observações críticas (porque mesmo sem querer é difícil não tropeçar em alguma questão estilística), mas que permanece sendo o que é, comentário — nada contra, aliás, tem alguns que são importantíssimos, só não podem ser confundidos com… crítica.