Hoje no Dialética Crítica converso com o querido colega Gabriel Carneiro, que além de ser um dos organizadores das publicações de “os filmes essenciais” da Abraccine também já escreveu em diversas outras publicações. Uma das quais destaco na entrevista é a Revista Zingu!, que é ainda um material muito interessante de estudo para quem gosta de discutir o cinema brasileiro.
Você pode encontrar os trabalhos dele aqui neste link.
Euller Felix: Você pode contar um pouco da sua relação com o cinema? No doutorado você pesquisou sobre cinema paulista nos anos 1950, certo? Seu mestrado também foi discutindo cinema em São Paulo?
Gabriel Carneiro: Comecei a me interessar de verdade por cinema ainda na adolescência, com uns 12 anos. Via muita coisa no cinema e na tv a cabo, eventualmente comprei um dvd player e comecei a frequentar a locadora. Sempre vi bastante filme. O foco inicial era o cinemão hollywoodiano “de prestígio”. Depois descobri propriamente o cinema de gênero, ficção científica, horror, faroeste, musical, policial etc. Claro, acompanhava, mas sem a paixão que nutro hoje. Comecei a escrever comentários trajados de crítica no site ePipoca, depois criei um blog, Os intocáveis, e foi minha porta de entrada para a escrita. Com a Zingu!, criada em 2006, passei a descobrir o cinema brasileiro em toda sua multiplicidade. Foi um período muito importante para mim, conhecer todas aquelas pessoas que fizeram cinema no Brasil, o lugar que ocupavam na época etc. Por isso, meu foco como pesquisador se tornou a história do cinema brasileiro, a memória do cinema, entender como o cinema foi pensado, articulado, discutido e feito. Acabei me aprofundando no cinema paulista e, na academia, enveredei por aí. No mestrado, defendido em 2016, pesquisei o cinema paulista da geração 1980 – que engloba o neon-realismo e o pessoal da Vila Madalena, entre outros –, seguindo uma metodologia que sempre me interessou, que é o trabalho com fontes primárias. No doutorado, que defendo até junho, em fase final de escrita neste momento, pesquiso a emergência do cinema paulista entre 1949 e 1965, com foco na produção independente. Como gosto de trabalhar com fontes primárias (entrevistas, documentos, imprensa), creio que posso contribuir mais com esses tópicos. Nesse sentido, acho que a formação em jornalismo influenciou essa predileção. O que até pode parecer um contrassenso para um crítico, que deve analisar a obra a partir da sua linguagem, mas creio que são complementos muito benvindos. Paralelamente, também pesquiso ficção científica e cinema japonês, entre outros, assuntos que me fascinam.
O trabalho com cinema, claro, não é restrito à crítica ou mesmo a pesquisa. Difícil viver disso. Como autônomo, trafego nas possibilidades. Faço curadoria e seleção para festivais; ministro aulas, cursos, palestras etc.; faço captação, direção, edição, roteiro e afins para vídeos institucionais, bem como realizo alguns filmes e trabalho em filmes de amigos; sou jornalista, ou seja, escrevo reportagens, faço entrevistas, faço edição de livros, catálogos e afins. Tem que ser polivalente.
E, acima de tudo, continuo cinéfilo: o cinema faz parte do meu trabalho e do meu lazer.
Euller Felix: Você foi um dos editores da Revista Zingu! (que eu gostava de ler e sempre retomo em algum momento) que discutia cinema brasileiro, como você a discussão em torno deste tema nos dias de hoje?
Gabriel Carneiro: O cinema brasileiro é vasto e está no mundo. Discute-se bastante o cinema brasileiro na academia e na crítica e, no atual contexto, até popularmente, graças ao Ainda estou aqui e a repercussão que o filme tem alcançado (continuamos vira-latas, nesse sentido, infelizmente). É um fenômeno muito bom. A expansão dos cursos de cinema, de pesquisadores interessados, de publicações por demanda etc., tem feito com que recortes variados sejam discutidos e valorizados. Claro, há um nicho. Cinema brasileiro não é hegemônico e sequer canônico pensando em um contexto mais largo mesmo no Brasil. Mas vejo um interesse genuíno em pensar o cinema brasileiro.
O contexto transforma também como se olha esse cinema. Nos últimos dez anos, passamos a pensar o cinema pela diversidade, em redescobrir obras, cineastas e afins, e incentivar a produção de mulheres, negros, indígenas, lgbtqia+, que sempre foram menosprezados pelo senso comum. Vejo isso muito no cinema brasileiro. São os pontos mais abordados na crítica e na academia – e mesmo os filmes tem centrado suas narrativas e seus personagens nessa perspectiva. Já era tempo.
Na Zingu!, nos preocupávamos especialmente em historiar um cinema popular pouco valorizado. A Boca do Lixo teve grande espaço, mas não só. Achávamos que Cinema Novo, Glauber Rocha etc., já tinham muito espaço, poderíamos fazer outra coisa. E acho que foi importantíssimo termos feito isso naquele momento. A revista durou de 2006 a 2013 e conversamos com dezenas de profissionais que partilharam suas histórias e que, hoje, são os únicos registros disso. Eles não tinham espaço na mídia (intelectualizada) e a maioria, infelizmente, não está mais aqui. Como pesquisador, sempre lamento a falta de informação sobre determinadas figuras. Nesse sentido, creio que ainda falhamos miseravelmente em discutir o cinema brasileiro de cunho popular. Embora haja iniciativas particulares, são filmes ainda desvalorizados. Continuamos passando ao largo das comédias (contemporâneas e históricas) e dos filmes de gênero. Uma pena.
Euller Felix: Você ajudou a organizar alguns livros sobre cinema e também escreveu o livro “Olhando para as estrelas só vejo o passado”, que é de ficção, não é? Pode falar um pouco dessa experiência, e se possível, como você vê o cenário de publicação de livros no Brasil? Sobretudo de cinema.
Gabriel Carneiro:São duas experiências diferentes, que de certa forma se relacionam. Olhando para as estrelas só vejo o passado é um romance de ficção científica, minha estreia literária, se assim podemos dizer. Uma espécie de continuação de um veio artístico que teima em aparecer e que começou com meus filmes (fiz cinco curtas, Morte e morte de Johnny Zombie, Batchan, Aquela rua tão Triumpho, Esboçando Miziara e Memória Presença). E tem bastante a ver com os filmes, pois surgiu primeiro como roteiro de curta-metragem, curtíssimo, com quatro páginas, para ser feito sem som direto e baixo orçamento, e evoluiu num romance. Mescla dois elementos que, creio, são centrais pro meu trabalho como crítico, pesquisador e, por que não?, artista. Um deles é a ficção científica, meu gênero preferido, com infinitas possibilidades para discutir o presente, e também o passado e o futuro O outro é a memória, algo tão caro pra mim, presente nos meus quatro últimos curtas e que guia minha carreira como pesquisador. De certa forma, acho que estou sempre tentando pensar a memória. E, no romance, o foco é esse, a materialidade da memória.
Organizei, com o Paulo Henrique Silva, três livros da Abraccine, dentro da coleção 100 Filmes Essenciais: Animação brasileira, publicado originalmente em 2018 e que ganhou agora uma segunda edição; Curta brasileiro (2019) e Cinema fantástico brasileiro (2024). A coleção já existia, com dois volumes, 100 melhores filmes brasileiros e Documentário brasileiro, em que havia colaborado como crítico, e, dado meu interesse pela animação, o Paulo me convidou para organizar o livro com ele, uma parceria que deu super certo e seguiu nos volumes seguintes. Trabalhar nesses livros, para mim, sempre esteve ligado a esse aspecto da memória, em permitir que filmes e nomes muitas vezes relegados na construção de uma história canônica pudessem ser revistos e redescobertos. E, bem sabemos, infelizmente, há gêneros, formas, estilos pouco apreciados pela crítica e pela academia, de maneira geral. Gosto de pensar que esses livros, feitos para serem introdutórios e de fácil comunicação, podem ajudar a desmistificar parte de nosso cinema. Os três livros seguiram a mesma premissa: associados da Abraccine e convidados elegem 100 filmes de determinado recorte e, partir dele, montamos um livro. No sentido pragmático, isso envolve a distribuição dos textos entre os críticos e pesquisadores, pensar os temas para os artigos de cunho histórico que acompanham os 100 filmes essenciais – porque 100 filmes não contam toda a história (nem os artigos, claro, mas alargamos um pouco mais o escopo assim) –, parte da produção editorial, além de, claro, revisar e editar todos os textos, tratar com os autores, com a editora, com a associação etc. É bastante trabalho, com sua parcela de problemas, e voluntário. Com a experiência, felizmente, fomos entendendo melhor os processos e aperfeiçoando os métodos – por exemplo, trabalhamos com listas fechadas de filmes no Animação brasileira e no Curta brasileiro, montadas por comissões específicas, e com cursos formativos no Cinema fantástico brasileiro, além de uma lista de sugestões. Foram formas de possibilitar uma lista final historicamente plural e creio que o resultado é bem satisfatório.
Hoje, as possibilidades para se publicar livros são muito melhores do que há alguns anos atrás. Podemos trabalhar com publicação por demanda, o que significa pequenas tiragens – ninguém mais precisa bancar 2 mil exemplares de uma vez e correr o risco de o livro encalhar. Ferramentas como pré-venda e financiamento coletivo permitem arrecadar parte do orçamento antes da impressão, notoriamente o mais caro. Ao mesmo tempo, uma impressão menor significa custos unitários mais altos, o que pode agravar a crise atual: o papel e outros insumos estão caros, o que faz com que um livro físico novo, em brochura, papel pólen, p&b etc., possa custar um valor exorbitante, mesmo sem grande acabamento gráfico. Vejo editoras lançando livros de origem acadêmica por 150, 200 reais. Quanto mais páginas, mais caro. Trabalhei com editoras independentes, que não tem o marketing por trás para fazer dessas obras bestsellers, então a divulgação é uma constante. Meu romance foi lançado pela Patuá e você consegue comprar diretamente com a editora, pelo site, ou comigo – pois é uma forma de conseguir difundir a obra, vendo autografado, com dedicatória etc. –, não está nas livrarias, e isso permite que o preço de capa (R$ 50) seja relativamente baixo perto de outras editoras. Já os da coleção 100 Filmes Essenciais, além da editora, está em outras livrarias. O preço é mais alto (R$ 80-90), mas é também maior (quase 400 páginas, no formato 23×16). Livros, hoje, não deixam de ser investimentos – eu, particularmente, consumo bastante. Essa facilidade propicia a chegada muitos títulos no mercado, mais do que podemos, individualmente, absorver. Ao mesmo tempo, permite que nossas bibliotecas tenham opções diversas. Com isso, muitos livros de cinema têm chegado ao mercado editorial, seja como tradução, seja como publicação original, mas, claro, ainda falta bastante. A tradução traz outros gastos, como direitos autorais e a tradução em sim, o que deixa menos viável – por vezes, apenas biografias de figuras famosas e marcos acadêmicos vingam por aqui. Sonho com o dia em que veremos a autobiografia do Roger Corman ou as obras de Tadao Sato sobre cinema japonês traduzidas para o português brasileiro
Euller Felix: Gosto de perguntar isso para entender um pouco sobre as influências dos meus colegas, quais foram os textos e livros que você considera fundamental para sua visão de crítica e de cinema?
Gabriel Carneiro: Quando comecei a me interessar por cinema, a internet estava começando e, embora houvesse sites como Contracampo, ePipoca, Adorocinema etc., a crítica estava essencialmente na imprensa de papel. Não assinávamos jornais em casa, mas eu comprava a Set com certa frequência. Foram meus primeiros contatos, junto aos livros/guias do Rubens Ewald Filho. Com o tempo, comecei a ler obras sobre assuntos específicos e procurar críticos que me faziam pensar o filme para além do gosto e da técnica (“a fotografia é boa”, essas coisas). O Inácio Araújo é um nome importante nessa seara, fiz o curso dele de história e linguagem em 2006 e abriu bastante minha cabeça. Quando montei o blog, Os intocáveis, em 2004, passei a ter mais contato com o meio crítico. Com os anos, descobri o pessoal da Paisà, do Cinequanon (que depois integrei), Filmes Polvo etc., para além de figuras como o Carlão Reichenbach, que não era crítico, mas cujo texto instigava, para além de ser uma pessoa extremamente generosa – pense, o conheci com 18 anos na aula do Inácio e quando me apresentei ele falou comigo se eu fosse a celebridade!, rs –, e o Alfredinho Sternheim, um querido, com anos de experiência na crítica e no cinema. Essa formação, creio, moldou muito minha maneira de pensar a crítica – não pensar o cinema propriamente, mas pensar a forma da crítica. A ideia de manter um respeito e uma generosidade no diálogo com o leitor (e com os responsáveis pelo filme), de provocar sobre o que o filme me propõe enquanto discurso, enquanto forma e estética. E também de evitar preconceitos bobos, conceitos fechados etc.
Embora minha formação crítica seja deficitária, no sentido de que li poucos críticos canônicos, passei ao largo dos franceses, Cahiers etc., sempre li bastante os brasileiros, muito por conta das minhas pesquisas, e muito livros. Leio mais livros do que críticas propriamente, especialmente livros de história e historiografia do cinema. Me interessa muito pensar o cinema no contexto histórico, de produção etc. Livros como Historiografia clássica do cinema brasileiro (Bernardet) e Boca do Lixo: cinema e classes populares (Abreu) li muitas vezes. Assim como as Histórias do cinema brasileiro (esse Nova História, de 2018, é excelente), a biografia Maldito, sobre o Mojica, e as autobiografias do Corman (How I Made A Hundred Movies In Hollywood) e do Buñuel (Meu último suspiro), Cinema e história, do Ferro, entre outros.
Dois textos que hoje me parecem incontornáveis para pensar a crítica são Da abjeção, do Jacques Rivette, e Imagens apesar de tudo, Georges Didi-Huberman, que discutem a ética da imagem.
Euller Felix: E para você, qual é a função da crítica de cinema?
Gabriel Carneiro: Não sei se gosto da palavra “função”. Crítica tem que ter função? A arte precisa de função? Pra mim, a crítica é um diálogo entre o crítico, a obra e o leitor/espectador, é uma proposta de entendimento, de leitura, de visão. Como crítico, a escrita (ou a fala) me permite articular um pensamento, a concatenar as ideias esparsas que se formam durante a apreciação. Como leitor, a boa crítica me possibilita ver a obra com outro olhar – concordando ou não –, decifrar o filme por outras ferramentas. Lógico, aí há parâmetros, para mim, da boa crítica, que busco ler e tento escrever. Nisso, o foco é a forma, a linguagem do filme, e como ela se conecta (ou não) com o assunto. Também me interesso pelo contexto extra fílmico. Não anedotas de bastidores, mas como a obra se relaciona com seu entorno, com o próprio cinema, com a história etc. Não há fórmula para isso, evidente.
Claro, de certa forma, estar aberto a diferentes leituras e opiniões te permite pensar o mundo de maneira mais aberta, a perceber e, por vezes, aceitar as contradições. Seria sua função? Não me interessa uma visão monolítica do cinema ou da vida. Carlão falava que era preciso “olhos livres” e acho que é isso.
A foto deste post foi tirada por Thailiny Cruz