Amplamente considerado como o primeiro longa-metragem japonês (1), “Momotaro Umi no Shinpei”, de 1945, dirigido por Mitsuyo Seo e produzido pela Geijutsu Eigasha, dessa vez em parceria com a Shochiku e com financiamento do Departamento de Informação da Marinha Imperial Japonesa (2), marca a linha de chegada de um longo processo de ressignificação da figura mitológica de Momotaro na produção audiovisual japonesa, assim como os últimos esforços do Ultranacionalismo de expressar sua ideologia na animação. Assinalado historicamente como uma espécie de continuação espiritual de “Momotaro no Umiwashi” (1943), o filme apresenta uma intensificação na retratação da violência, uma exasperação do discurso ultranacionalista e seu incentivo abjeto ao recrutamento militar e o esforço de guerra por parte das crianças, e um aperfeiçoamento técnico qualitativo que o tornaram um marco incontornável da animação japonesa em sua imbricação do desenvolvimento técnico-estético e o ultranacionalismo.
Durante a produção de “Momotaro no Umiwashi”, de 1943, apesar das inovações tecnológicas apresentadas, como o beliche de cinco andares para maior profundidade de foco e encenação, as condições de produção eram bastante extremas em função da escassez de celuloide para os desenhos e a falta de mão de obra qualificada, problema que afetava toda a indústria cinematográfica devido ao recrutamento compulsório para os esforços de guerra (3). Em “Momotaro Umi no Shinpei”, realizado ao fim de 1944 no auge dos bombardeios de Tóquio (que eventualmente interrompiam a produção), não há razão concreta para acreditar numa melhora das condições de realização do longa-metragem, mesmo com o aparato estatal e militar se predispondo a arcar com todos os custos da produção (como fora no curta de 1943), e a associação da produção com a Shochiku, permitindo a Seo utilizar as instalações e equipe do estúdio, uma vez que agora tratava-se de uma obra com o dobro da metragem do projeto anterior e com expectativas ainda mais altas para o grande resultado. Finalizado e exibido no primeiro trimestre de 1945, “… Umi no Shinpei”, todavia, não obteve um resultado comercial compatível com seu antecessor, uma vez que a destruição dos cinemas, das cidades e o recrutamento de crianças e adolescentes a partir de 12 anos para o trabalho em fábricas (4) reduziu violentamente o público possível para a exibição. Após a guerra, o filme eventualmente desapareceria durante a Ocupação Estadunidense, presumindo-se perdido junto de tantos outros filmes destruídos pelos norte-americanos, mas foi reencontrado em 1983 nos galpões de Ofuna da Shochiku (5). Seu legado, portanto, remonta a duas instâncias distintas: a conquista técnica e estética do primeiro longa-metragem de animação japonesa com um nível percebido de qualidade equiparável ao do mercado internacional, e a cristalização dos ideais, retórica, estética e discurso ultranacionalista nos instantes derradeiros da II Guerra Mundial, que, em muito, se concentram na figura e articulação narrativa de Momotaro.
O jovem “garoto pêssego”, Momotaro, esteve presente na animação japonesa desde os seus primórdios como “Momotaro” (1918) de Seitaro Kitayama ou “Nihonichi Momotaro” (1928) de Sanae Yamamoto. Todavia, a partir de 1932 uma série de figuras mitológicas ou populares da cultura japonesa são convocadas para as fileiras do ultranacionalismo a fim de tornarem-se veículos privilegiados de sua estética na animação. Dentre essas figuras estão Fuku-chan (“Fuku-chan Kisu”, de 1942, “Fuku-Chan no Sensuikan”, de 1944) e Norakuro (“Norakuro Shoui: Nichiyoubi no Kaijiken”, “Norakuro Nitohei: Enshu no Maki” e “Norakuro Nitohei: Kyoren no Maki”, todos de 1933), mas nenhum foi tão recorrente e efetivo quanto Momotaro que aparece em obras emblemáticas da década de 1930 como “Sora no Momotaro” (1931), “Umi no Momotaro” (1932) e “Momotaro vs Mickey Mouse” (1934).
A narrativa mitológica tradicional de Momotaro possui diversas versões, mas costuma gravitar ao redor de um casal de idade que nunca teve filhos e um dia encontra um grande pêssego descendo a correnteza. A matriarca então leva o pêssego para casa e dele nasce uma criança, Momotaro. Grato por ter sido acolhido pelo casal, Momotaro cresce como um jovem disciplinado, respeitoso e extremamente forte, eventualmente treinando as artes militares para combater os demônios da ilha de Onigashima como forma maior de agradecimento aos seus pais por sua dedicação a ele. O herói então parte em sua jornada recrutando, por meio dos deliciosos bolinhos que recebe de seus pais para a viagem, um cachorro, um macaco e um faisão. A equipe chega a Onigashima, derrota os demônios, os obrigam a nunca mais perturbar os humanos e retornam cheios de riquezas para a felicidade de todo o vilarejo. Majoritariamente a narrativa sempre produziu leituras nacionalistas e educacionais no que tange o respeito e gratidão aos pais ou a disciplina, todavia, considerando o contexto da década de 1930, duas leituras diacrônicas se apresentam (6). A primeira, percebida com mais frequência nas obras de 1932 a 1940, coloca Momotaro como a grande nação japonesa que, auxiliada pelos animais, ou seja, as nações asiáticas conquistadas ou em perigo, derrota os inimigos vindos do ocidente. A segunda leitura, que emerge a partir da guerra do Pacífico em 1941, pontua Momotaro como o Estado ultranacionalista, calcado na figura do imperador, e o auxílio dos cidadãos na luta contra a ameaça estrangeira. Esteticamente essa mudança é clara na postura de Momotaro que nos primeiros curtas participa diretamente da ação, enquanto que em “Momotaro no Umiwashi”, de 1943, surge como um líder infalível que apenas ordena e conduz as operações levadas a cabo pelos animais. Essa segunda diretriz narrativa e possibilidade de leitura da mitologia de referência é diluída na primeira leitura de maneira a balizar de forma ambígua “Momotaro Umi no Shinpei”, filme que tenta, acima de tudo, seguindo outras obras do período como “Tanoshiki Kana Jinsei” (1944) de MIkio Naruse, levantar o moral e assegurar a cooperação do corpo civil e militar. Sendo assim, nesse último filme de animação com a participação de Momotaro (ao menos até a série de televisão animada da década de 1980) o que se percebe é a postura infalível do estrategista e do líder junto de sua presença no campo de batalha acompanhando as movimentações militares e o ataque em si. Seria possível considerar, dada a situação dos frontes japoneses e as dificuldades, tanto na China quanto no território japonês propriamente dito, que há aqui uma tentativa desesperada de apelar a todos os ânimos e de todas as formas em nome dos esforços de guerra.
Carregado com a experiência de realização de “Momotaro no Umiwashi” e inspirado, em termos de ritmo e estrutura, por “Tieshan Gongzhu” (1941), de Wan Laiming e Guchan Wan, Mitsuyo Seo traz uma animação mais fluida em geral, com diversas sequências musicais e contemplativas que se escoram em motivos naturais e contribuem para alcançar a metragem desejada (exatamente a mesma de “Tieshan Gongzhu”) e um estranho descompasso nas expressões das personagens e na forma como passam entre emoções, que recebem grande destaque. Esses motivos e temas visuais são fundamentais para embasar a escolha de Seo por uma retratação muito mais idealizada e estetizada da guerra e do cotidiano japonês em meio à guerra do que visto anteriormente e isso pode ser observado em duas instâncias. Primeiro nas comparações simbólicas entre a natureza e o contexto militar, como nos dentes-de-leão que se tornarão os paraquedistas descendo em meio ao campo de batalha com música suave e pacífica, e segundo na forma como opta por estetizar a violência. Nesse caso, em comparação com “Momotaro no Umiwashi”, a presença e representação da violência, como antevisto pelos danos de artilharia antiaérea na fuselagem do avião de reconhecimento quando de seu retorno, é maior e mais direta, principalmente porque o conflito final é realizado física e diretamente pelos soldados em terra e não com um intermediário mecânico como havia sido na maioria dos filmes até então. Apesar de não conter cenas com sangue, desmembramento ou mortes em quadro, a indução e conotação destas pela lógica narrativa é mais frequente devido ao aumento no número de armas, disparos, granadas, explosões, estocadas de baioneta e assim por diante que constituem a encenação do brevíssimo combate final.
Também diferente do filme anterior, em “… Umi no Shinpei” o corpo nacional unificado e tratado como protagonista coletivo é individualizado e pormenorizado a fim de dar vazão a um discurso mais completo. O retorno dos cadetes/soldados à suas casas e famílias antes de partir rumo ao confronto, apresenta de imediato a disciplina, o respeito e reverência à natureza e as tradições, aqui incorporadas pela religião, o respeito aos pais com a dedicação a família (mais evidente na narrativa do faisão) e diligência no auxílio a comunidade civil, como exemplificado na sequência de resgate de Santa. Dessa forma, o longa não perde tempo na apresentação do jovem japonês ideal do ultranacionalismo como um filho admirável e responsável pronto para o serviço militar. Ao narrar suas aventuras e deslumbres no serviço militar, o jovem macaco introduz uma visão positiva da guerra como empreendimento seguro e recompensador, algo pelo qual as crianças que escutam atentamente anseiam por. Esse desejo das crianças pelo serviço militar concatena-se no momento em que Santa, utilizando a boina naval de seu irmão mais velho, encena, para seu reflexo na água, as posturas e movimentos militares que deseja colocar em prática. O mesmo acontece no epílogo em que as crianças fazem atividades físicas, dentre elas, saltar em direção ao desenho dos Estados Unidos no chão, numa alusão a próxima invasão e próximo território a ser conquistado.
No bloco intermediário que ocupa a maior da metragem e transcorre numa base intermediária no pacífico, são vistos animais de todas as espécies. Dessa maneira, o filme estabelece com mais clareza como articula ambas as leituras do mito de Momotaro simultaneamente a partir do momento em que estabelece os animais antropomorfizados como a grande unidade do leste encabeçada pelo Japão (como cantam o trio de macacos que representam outros países asiáticos “eles são como nós, mas nem tanto”) graficamente separando os japoneses, os animais mitológicos companheiros de Momotaro somados a ursos e coelhos, e os animais estrangeiros que incorporam as forças, sendo estes mais selvagens. Após uma canção que saúda o trabalho e a cooperação mútua com o objetivo de auxiliar o Japão na guerra, segue-se uma sequência em que as forças japonesas tentam alfabetizar (no japonês) os “selvagens” incivilizados que fazem todo tipo de balburdia na sala de aula.
Antes de prosseguir para o terço final que compreende todo o combate, o filme apresenta um conto que narra a invasão de Celebes pelos Holandeses. Esse pequeno interlúdio, além de supostamente justificar a invasão daquele território pelos japoneses com o objetivo de expulsar os verdadeiros invasores estrangeiros que destroem e pilham o país, também acaba referenciando a própria história japonesa e seu processo de abertura após o Bakumatsu, assim como comenta o papel dos europeus nos países e colônias ao redor do Japão. Finda a narrativa justificadora, o terço final tem início rumando ao clímax com a mesma codificação do filme anterior, estabelecendo o clima de tensão com silhuetas, um céu nebuloso, chuva forte e uma eventual quebra de atmosfera, nesse caso, por meio de uma canção.
Sendo assim, “Momotaro Umi no Shinpei” engendra o ponto alto do ultranacionalismo enquanto estética e discurso dentro da animação no período e potencializa suas leituras mais terríveis e abjetas, não apenas pelo impulso imperialista de colonização e invasão das nações asiáticas ao redor, mas principalmente pela disparidade da estética fofa e arredondada (muito bem realizada) dos animais antroporfizados em contraposição ao seu intuito ideológico de campanha militar para infância e juventude. Se o filme deve ser considerado e relembrado por suas conquistas técnicas (como o beliche de Mochinaga e a metragem) deve também ser criticado e pensado em vista da maneira como articula o discurso ultranacionalista em imagem e som.
Notas
(1) – CLEMENTS, J; MCCARTHY, H. The Anime Encyclopedia. 3. ed. Berkeley: Stone Bridge Press, 2006, pag. 424
(2) – CLEMENTS, J; MCCARTHY, H. The Anime Encyclopedia. 3. ed. Berkeley: Stone Bridge Press, 2006, pag. 424
(3) – CLEMENTS, Jonathan. Anime: A History. 1. ed. Londres: BFI, 2013, pag. 62
(4) – CLEMENTS, Jonathan. Anime: A History. 1. ed. Londres: BFI, 2013, pag. 64
(5) – CLEMENTS, J; MCCARTHY, H. The Anime Encyclopedia. 3. ed. Berkeley: Stone Bridge Press, 2006, pag. 425
(6) – ANTONI, Klaus. Momotaro (The Peach Boy) and the Spirit of Japan. Nagoya: Nanzan University, artigo em Asian Folklore Studies, Vol. 50, No.1, 1991.
*Raphael Cubakowic é professor, crítico de cinema e tradutor. Enquanto montador, foi responsável pelas obras “Fragmentos de Uma Metrópole”, “Pontos de Vista” e “Toda Sombra Parece Viva”. Foi também editor e produtor na Versátil Home Video por quatro anos, e além de escrever para sites e blogs, desde 2018 ministra aulas sobre história, estética e teoria do cinema.