Na continuação da minha série de entrevistas sobre crítica de cinema com colegas de ofício, converso com uma das pessoas responsáveis por termos alguns dos livros mais interessantes sobre cinema aqui no Brasil, Paulo Henrique Silva.
Preciso dizer aqui que sempre que vou entrevistar algum colega, um material que sempre consulto para elaborar as perguntas é o livro “Trajetória da Crítica de Cinema no Brasil” organizado por Paulo e com colaboração de críticos de todo o país. Então, muito dessa série existir eu devo a este livro.
Além de crítico no jornal O Tempo, foi organizador do livro “Trajetória da Crítica de Cinema no Brasil” e dos livros da coleção “100 melhores…”. O último livro publicado desta coleção foi “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 filmes essenciais”, que foi organizado em conjunto com Gabriel Carneiro.
ENTREVISTA
Euller Felix: Uma das razões desta série de entrevistas com críticos de cinema existir foi ter lido o livro “Trajetória da Crítica de Cinema no Brasil”, organizado por você. Você pode falar um pouquinho sobre como surgiu a ideia de pensar e como foi produzir um livro sobre a crítica de cinema aqui no Brasil?
Paulo Henrique Silva: Quando você fala que o livro lhe levou a criar esse espaço, sinto que um dos objetivos dele está sendo cumprido, ao chamar a atenção para a história e o desenvolvimento da crítica de cinema no Brasil, que é muito rica e marcante não só dentro da arte cinematográfica; na literária também. Basta pegar os textos de Carlos Drummond de Andrade e ver o quanto ele escreveu sobre cinema, com breves análises críticas, fora o fato de a sétima arte ter sido fonte inspiradora de poesias exuberantes. Glauber Rocha publicava críticas no jornal A Tarde antes de criar suas obras-primas. Para citar um exemplo mais recente, temos a turma da produtora Filmes de Plástico, daqui de Contagem, que teve uma intensa produção crítica quando ainda estudavam cinema. Veja o quão importante foi esse exercício para moldar o pensamento deles como realizadores. A partir daí fica bem claro o papel da crítica, como farol para os leitores e também para quem escreve, para dentro de nós mesmos. Escrever sobre um filme é estabelecer um contato franco e doloroso com o nosso interior, com as nossas convicções e formas de pensar o mundo. Uma das experiências mais maravilhosas como crítico é sair da sala ainda com ideais frágeis sobre o que acabou de ver e perceber como aquele impacto vai lhe tomando durante o dia. É como no parto, um misto de dor e felicidade. O nascimento de um texto crítico é tão doloroso quanto qualquer outro, até porque ele não parte completamente do zero e outras pessoas irão acessar a obra em questão, estabelecendo imediatas comparações. É por isso que muitos críticos adotam um jeito meio labiríntico ao escrever, como se quisesse se esconder do seu leitor. É medo, um medo de ser julgado, da mesma forma que ele está julgando um filme. Antes de mais nada, apesar de o termo “criticar” leve a ideia de julgamentos, temos que pensar esse texto como a construção de uma conversa, aos moldes do método socrático, levantando questões para que o leitor pense junto com o autor. Costumo dizer que a melhor crítica é aquela em que o interlocutor não sabe se gostamos ou não da obra. Gosto é muito pessoal, mas destrinchar os mecanismos narrativos e estéticos não precisa de grandes julgamentos. Afinal, há uma história de mais de 100 anos que nos serve de base.
Acabei me desviando um pouco de sua pergunta sobre o “Trajetória da Crítica de Cinema no Brasil”, mas é importante entender que essa história não está simplesmente a reboque dos movimentos e da evolução da linguagem do cinema. Ela é muito maior do que isso, englobando ingredientes sociais, econômicos, históricos e geográficos. Tudo isso fica bastante claro no livro quando cruzamos as histórias do desenvolvimento da crítica em cada estado. Primeiro vem a questão do desenvolvimento econômico de um lugar, com o consequente acesso à educação e à melhoria de vida. O jornalismo, que é o grande berço da crítica de cinema, surge da necessidade de informação e conhecimento. Quanto maior a quantidade de jornal numa cidade, mais evidente se tornava o nível cultural daquela sociedade, que podia optar entre posições editoriais diferentes. Com a expansão dos cinemas, uma arte que surge fundamentalmente da industrialização, por conta da eletricidade, os jornais viram a necessidade de comentar sobre os desdobramentos daquele invento. Tanto é assim que as primeiras críticas abarcavam elementos extra-filmes, reparando no público e na própria sala. Só nos anos 40 é que passamos a ter uma metodologia para a crítica de cinema.
Portanto, a trajetória da crítica de cinema, de norte a sul do país, é um reflexo do desenvolvimento econômico, da educação (sem ela, ninguém leria jornais), dos meios de comunicação e do fortalecimento do cinema como uma arte popular. Antigamente comprávamos jornais para sabermos sobre as estreias de sexta-feira (depois passaram para quinta). Em vista deste interesse, passaram a acontecer as cabines para críticos, que beneficiavam toda a cadeia, dos realizadores e exibidores aos veículos. O surgimento da internet e a consequente queda de circulação dos meios tradicionais impactaram fortemente a atividade, que deixaria de ser profissional (no sentido que você era pago para escrever sobre filmes) para ser algo mais autônomo e multifuncional. Ninguém mais é crítico apenas, tendo que abraçar outras áreas ligadas ao cinema, como curadoria e docência. Todas essas transformações são abordadas no livro.
Euller Felix: E já aproveitando o gancho da última pergunta, como você observa a crítica de cinema que é realizada nos dias de hoje aqui no Brasil?
Paulo Henrique Silva: A crítica de cinema está numa grande encruzilhada, porque do jeito que está hoje, não é sustentável, vivendo de boa vontade e paixão. Quando amamos uma coisa, nos sacrificamos por ela – tempo, dinheiro e até saúde. Assim é com a crítica hoje em dia. A maior parte é exercida por jovens, que criam um blog, canal ou perfil para publicar seus textos. Mas, na maioria das vezes, não há continuidade, abandonando pouco depois esse esforço porque não há retorno financeiro. Vão ficando mais velhos, constituindo famílias e dívidas, e deixam a atividade. Na Abraccine, há vários casos assim. Quando nos damos conta, simplesmente desaparecem. Quando fui presidente da entidade, entre 2015 e 2019, sempre tive essa preocupação de saber como cada um estava, buscando ajudar de alguma forma. Nos encontrávamos nos festivais e mostras e conversávamos bastante sobre todas essas mudanças. Mas hoje é impossível fazer esse acompanhamento. A Abraccine tem mais de 190 associados, sendo que muitos não saem de suas localidades porque têm outras atividades. Sequer conhecemos seus rostos. Mas arrisco dizer que metade deles não continuará fazendo críticas em dez, 15 anos, se algo realmente não mudar de verdade. Antes, você podia acompanhar toda uma trajetória de um crítico por anos, vendo-o passar por diversas publicações. Todo jornal tinha um crítico de cinema em seus cadernos culturais. Ele representava “o jornal” naquela área, tinha esse cacife. Era algo simbiótico até. Um determinado profissional ficava vinculado a determinado veículo, como Inácio Araújo é em relação à Folha de São Paulo. É comum ouvir algo assim “como se chama aquele crítico da Folha mesmo?”. Às vezes se esquece o nome, mas se sabe que ele está sempre nas páginas do jornal. Isso se quebrou no início do século, com a democratização proporcionada pela internet e a precarização dos veículos tradicionais. Muitas oportunidades surgiram a partir daí, já que havia um círculo meio fechado antes. O lado positivo é que houve um aumento na pluralidade de opiniões e apareceram especialistas em alguns nichos – cinema negro, de super-heróis da Marvel, feminista, LGBTQIA+… Os textos eram aprofundados, num caminho inverso ao que acontecia nos jornais, em que se precisava exercer o poder de síntese para driblar os poucos caracteres. Mas essa bolha “furou” tempos depois, pela questão da sustentabilidade que falei. Os jornais passaram a contratar frilas para o trabalho de crítico, quando não o extirparam completamente, fazendo com que repórteres sem muito conhecimento fizessem esse papel. A qualidade caiu drasticamente. Muitos canais e perfis foram interrompidos, porque a monetização não é para todos e tem tempo limitado, já que os leitores são flutuantes. E o pior é ver muito material bom desaparecendo para sempre no buraco negro da internet. Durante muitos anos, Cid Nader era o único crítico que escrevia sobre curtas-metragens no Brasil, no site Cinequanon. Ele faleceu em 2017 e os textos saíram do ar. Preservar, em livro, o trabalho feito por nossos críticos é o que tem mais me ocupado atualmente. Não ganho nada com isso, do ponto de vista financeiro, mas é uma missão que assumi, ao ver críticos de cinema importantes em minha formação com parte de sua obra reunida em livro.
Euller Felix: Você foi um dos organizadores de livros sobre os melhores filmes e deste último lançado pela ABRACCINE sobre cinema fantástico aqui no Brasil. Pode nos falar um pouquinho de como você vê a questão de publicações de livros sobre cinema no Brasil?
Paulo Henrique Silva: Desde os primeiros meses como presidente da Abraccine, eu já tinha em mente a publicação de livros voltados para a crítica de cinema e também para o cinema brasileiro. Aliás, desde o primeiro dia, pois me lembro que, no Festival de Gramado onde aconteceu a eleição, em 2015, já comecei a costurar algumas parcerias, como o Canal Brasil. Como já tinha publicado um livro com a editora Letramento, o “Sempre Acreditamos – Os Três Anos que Marcaram a História do Atlético”, que reuniu crônicas minhas feitas para o jornal Hoje em Dia, e mantinha uma boa relação com eles, num belo dia recebi a proposta de fazer algo semelhante ao “1001 Filmes para Ver Antes de Morrer”, que estava meio na moda na época.
Topei, mas com dois diferenciais importantes: seriam apenas filmes brasileiros, a partir de uma eleição que faríamos com associados. Não há um crítico que não goste de fazer listas de melhores. A Abraccine já promovia um prêmio com os melhores do ano, para longas nacionais e estrangeiros e curta brasileiro. No livro, seríamos mais ousados e contemplaríamos toda a produção do país até então. Um detalhe crucial foi estabelecer que os 100 títulos seriam abordados por 100 críticos diferentes. Além de abrir espaço para a produção de análises críticas, especialmente sobre obras do país, minha intenção com o livro foi criar um projeto em que toda a entidade pudesse participar,estabelecendo um vínculo maior numa entidade com associados espalhados por todas as regiões. E deu certo. O livro teve acabamento de luxo, com capa dura e formato diferente (“deitado”), além de muitas imagens coloridas. Lançamos um ano depois, em Gramado, com o apoio fundamental do Canal Brasil, que bancou toda a publicação. Sozinhos, com um livro desta qualidade gráfica, jamais conseguiríamos. Foi uma sementinha plantada em 2016 que se frutificou e virou um dos carros-chefes da Abraccine, mesmo após a minha saída da presidência.
Lançaríamos mais nove publicações, divididas em três eixos. A principal é, sem dúvida, dos “100 Melhores”, repetindo o tripé foco na cinematografia nacional, eleição dos melhores e divisão dos textos (100 filmes, 100 críticos diferentes). Cada projeto, no caso desta coleção, tinha dois momentos-chave: a eleição dos melhores era um evento em si, quase independente dos livros, e ganhava destaque na mídia; e depois a publicação propriamente dita. Antes da pandemia, conseguimos lançar um livro a cada ano: “Documentário Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2017), “Animação Brasileira: 100 Filmes Essenciais” (2018) e “Curta Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2019). O detalhe é que mudamos o nome da coleção a partir do segundo, porque consideramos que “100 Melhores Filmes Brasileiros “, que usamos no primeiro, era bem pretensioso, especialmente por se tratar de um olhar de momento, com todas as falhas que uma eleição deste tipo carrega. Se não me engano, foi Celso Sabadin o autor da ideia de se usar “Essenciais “. Com o primeiro, demos conta de nossas próprias limitações. Muitos críticos, especialmente os mais novos, valorizaram em demasia a produção mais recente, pós-Retomada, o que provocou um desequilíbrio muito grande no resultado final da lista e viramos alvo de críticas por conta disso. Mas foi importante para percebermos falhas de formação na categoria e criarmos atividades para aperfeiçoamento. Afinal de contas, estamos falando de um país com grandes desigualdades regionais, com locais sem salas de cinema e dificuldades de distribuição dos filmes brasileiros.
Então, para os livros seguintes, ampliamos a participação dos votantes de fora da Abraccine, escolhendo nomes que tinham relação com o tema. Também mudamos a metodologia. No lugar de dez títulos, cada votante listaria 50, também em ordem decrescente. Introduzimos, ainda, uma seção de textos que cobririam a história daquele formato ou gênero no Brasil, importante para incluir alguns filmes fundamentais que ficaram de fora da lista final dos 100 melhores. Deu super certo. No lançamento do livro de documentários, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, fui procurado pelo Arnaldo Galvão, da Associação Brasileira de Cinema de Animação. Ele propôs fazer algo semelhante com os filmes de animação, já que a produção brasileira neste formato estava completando 100 anos e, em 2018, estava sendo preparada em Annecy, na França, palco do principal festival de animação do mundo, uma grande homenagem à nossa produção. Estávamos preparando o livro de curtas e, confesso, não passava pela minha cabeça que haveria filmes de animação suficientes para chegar a 100 títulos. Ledo engano. A nossa produção neste campo é diversa e muito rica, além de conquistar protagonismo em anos recentes, com “Guida”, “Uma História de Amor e Fúria” e, principalmente, “O Menino e o Mundo”, que concorreu ao Oscar da categoria em 2016. O apoio da ABCA na escolha dos filmes foi primordial. Ao reconhecermos nosso pouco entendimento sobre a trajetória da animação brasileira, até porque não havia praticamente nenhuma bibliografia a respeito até então (com exceção de “A Experiência Brasileira no Campo de Animação”, do saudoso Antônio Moreno, lançado em 1978) e pouco acesso aos desenhos mais antigos, pedimos à ABCA para fazer uma lista, com mais de 100 títulos e sem nenhuma ordem, para nos servir de guia. Além disso, eles forneceram links de todos os filmes. O livro conseguiu recursos do Ministério da Cultura, também por meio da ABCA, o que nos levou a Annecy, para um lançamento internacional. Os livros da Abraccine estão presentes em bibliotecas importantes de vários países, especialmente nos Estados Unidos (uma relação pode ser acessada no site World Cat), mas, lançamento no exterior, era o primeiro – e único até hoje. A ironia é que o livro, planejado como bilíngue, não teve recurso e tempo para tanto. A maior parte dos exemplares ganhou uma destinação entre os patrocinadores e o setor de animação e poucos foram disponibilizados para venda ao público em geral, esgotando-se rapidamente. Com a procura crescente ao longo desses anos, resolvemos fazer agora uma versão mais simples, sem capa dura e imagens. Será lançada provavelmente em janeiro de 2025.
Além de todos esses fatos que cercaram positivamente a confecção do livro de animação, com alguns filmes recebendo a primeira análise crítica de sua história, a maior adição foi a entrada de Gabriel Carneiro, que passou a dividir a organização comigo. Gabriel é detalhista e muito organizado. Chamava-o de “o rei das tabelas”, porque todas as etapas de produção do livro tinham uma tabela de Excel para nos ajudar, com a gente podendo visualizar mais rapidamente as fases de cada texto, do convite ao autor à aprovação da revisão. Fora o grande conhecimento dele em animação, cinema marginal, da Boca e tantos outros. Tivemos grande sintonia, sempre chegando rapidamente a decisões de consenso. Não pensei duas vezes em chamá-lo para repetir a dobradinha em “Curta Brasileiro” e “Cinema Fantástico Brasileiro”, este lançado em janeiro de 2024, após mais de quatro anos de produção – e uma pandemia no meio, além do falecimento de meus pais, em 2021. Mas é também o melhor livro da coleção até agora. A novidade desta vez é que fizemos um curso sobre cinema fantástico como pré-requisito para todos que fossem participar da votação e da produção dos textos. Teve um papel semelhante à pré-lista da ABCA no livro de animação. Sabíamos que havia muito preconceito e pouca informação sobre filmes de horror, fantasia e ficção-científica feitos no país, em parte porque a característica da maior parte deles é o diálogo com outros gêneros, passando a ganhar os carimbos de comédia ou infantil. Todo esse cuidado fez com se tornasse um livro muito relevante para o estudo desse cinema, não só na parte dos textos críticos como também os relacionados à história.
Em relação aos livros da Abraccine, falei de três eixos. O outro é dedicado a nomes importantes da crítica de cinema no país, dando o merecido reconhecimento àqueles que nos formaram e abriram caminho no exercício da atividade. O primeiro não poderia deixar de ser sobre Jean-Claude Bernardet, que, aos 80 anos e com problemas sérios de saúde, ainda se mantinha bastante ativo, sempre apresentando uma análise provocativa sobre tudo que se referia à produção de filmes no Brasil. Por muito tempo, foi professor da ECA-USP e talvez venha daí o carinho e a atenção que dá aos mais jovens. Tanto é assim que, sem poder escrever devido a uma limitação da visão, ele se juntou a novos realizadores e se reinventou como ator, trabalhando com Kiko Goifman, Cristiano Burlan e outros. Assim, em 2017,abrimos essa coleção com “Bernardet 80: Impacto e Influência no Cinema Brasileiro”, pela editora Paco. Os autores são Ivonete Pinto e Orlando Margarido, dois nomes fundamentais na constituição da Abraccine. Ivonete foi uma das grandes incentivadoras da criação da entidade nacional, em 2011. Ela vinha da experiência da formação da Accirs, associação de críticos do Rio Grande do Sul. Quando venceram os meus dois mandatos na Abraccine, não tive dúvidas que ela tinha que me suceder, como uma forma de reconhecimento por tudo que fez. Ivonete foi quem, após um grande imbróglio com outra associação, tornou possível a nossa filiação na Fipresci, em 2016. Além disso, tem a questão de gênero. Antes de ela assumir, em 2019, a associação foi dirigida por dois homens – eu e o Luiz Zanin Oricchio, nosso primeiro presidente, que mostrou firmeza e competência nesse momento em que algo surge do zero, com todas as burocracias inerentes ao processo. Ele ficou de 2011 a 2015. Com a Ivonete, uma postura iniciada já antes ganhou maior ênfase, com equidade de gênero em praticamente todas as atividades da associação. Talvez tenha decepcionado um pouco o Orlando, meu braço-direito, vice por duas vezes em minha gestão, pois seria natural que fosse meu sucessor, mas era importante, naquele instante, termos uma mulher presidente, por tudo que vinha acontecendo no mundo. Ivonete foi a primeira e, até agora, a única mulher no cargo.
Depois de “Bernardet 80”, lançamos “Ismail Xavier: um Pensador do Cinema Brasileiro ” em 2019, organizado por duas grandes gaúchas, a Ivonete Pinto e a Fatimarlei Lunardelli, e pelo paulistano Humberto Pereira Silva. Três nomes ligados principalmente à docência de cinema, que é também o caminho percorrido por Ismail, autor de livros importantíssimos no estudo do cinema brasileiro. Um ano antes já tínhamos indicado o nome dele para receber a medalha Paulo Emílio Salles Gomes, criada em 2016 pelo Festival de Brasília para homenagear os grandes nomes do cinema brasileiro. Mas nossa forma de reverenciá-lo foi mesmo com o livro, publicado pela editora do Sesc, que fez um trabalho gráfico magnífico, além de contar com uma distribuição mais ampla. Para nós, era muito importante trabalhar com diferentes editoras. Isso acabou me dando um certa expertise na forma de lidar com elas. Procurei muitas editoras e recebi muitos “nãos” ou propostas que não faziam jus ao projeto. O Orlando ajudou muito neste sentido também, em especial com o Sesc, que tinha seus caminhos próprios. Com a mesma editora, fizemos “Inácio Araújo – Olhos Livres para Ver”, lançado em 2023, com organização de Laura Cánepa – outra gaúcha, que dá aula em São Paulo, e Sérgio Alpendre, um paulista que mora atualmente em Porto Alegre. Escolher bem os organizadores é crucial para o projeto. É preciso conhecer um pouco do perfil de cada um – e também de sorte. O fato de ter participado de seis gestões, no início como tesoureiro, me fez relacionar com todos associados da Abraccine e saber o que podia esperar de cada um. Laura e Sérgio eram muito próximos de Inácio e poderiam trazer uma abordagem diferente ao que Juliano Tosi fez em “Cinema de Boca em Boca – Escritos Sobre Cinema” (2010). Era essencial termos esse livro sobre o Inácio, como se fechássemos uma tríade de nomes dos mais representativos da crítica de cinema. Sempre li, com sabor e admiração, os textos de Inácio, encantado com o poder de síntese dele, dizendo muito em poucas linhas na “Folha de São Paulo”. O processo, porém, não foi fácil, devido à questão de direitos autorais. No lançamento, outro tipo de problema, com o Inácio sofrendo um cancelamento após uma declaração durante a Mostra de Gostoso, no Rio Grande do Norte. É difícil entrar nesse mérito, principalmente depois de um grande debate ocorrido na Abraccine após esse episódio, mas do ponto de vista do coordenador de publicações da entidade, o acontecimento “matou” a trajetória do livro, que chegou a ser desconvidado em um festival.
Além dos eixos “100 Melhores” e “Pensadores”, havia outro de títulos avulsos. Lançamos dois num mesmo ano,em 2019. Com “Curta Brasileiro” e “Ismail Xavier”, chegamos a quatro livros num mesmo ano. Veja que estávamos numa curva ascendente com as publicações da Abraccine, mas veio a pandemia e vivencíamos um hiato de quatro anos. Muitos títulos ficaram pelo caminho. A pandemia afetou o mercado editorial, mas principalmente as pessoas, que ficaram, de forma figurativa e literal, mais fechadas em seu mundo. Neste time de avulsos publicamos o “Trajetória”, pela Letramento, com um belíssimo prefácio de Ismail Xavier e uma grande participação de abraccineiros entre os autores. E também Mulheres Atrás das Câmeras – Cineastas Brasileiras de 1930 a 2018”, organizado por Luiza Lusvarghi e Camila Vieira. Era para ser o segundo livro da Abraccine, mas teve um percurso longo e cheio de sobressaltos, com saídas e desentendimentos entre organizadoras e mudança de foco. O projeto inicial previa uma publicação sobre mulheres na crítica de cinema e, no final de contas, enveredou por outro tema igualmente interessante, abordando as principais cineastas brasileiras da história. Com um dicionário de 265 verbetes, o livro foi lançado pelo Estação Liberdade. É o nosso livro mais reconhecido, tendo sido finalista do prêmio Jabuti na categoria Ensaio – Artes, em 2020.
Euller Felix Quais textos ou livros você considera fundamentais para a sua formação enquanto crítico de cinema?
Paulo Henrique Silva: Minha formação foi bem curiosa, porque a minha relação com o cinema se intensificou após a chegada do vídeo-cassete lá em casa, em 1986. Ficamos sócios do Videoclube do Brasil, na rua Sergipe, em Belo Horizonte, em que pagávamos uma mensalidade e podíamos pegar até dois filmes por dia. Grande parte dos filmes era de “piratas”. Não pegávamos os estojos dos filmes nas prateleiras, mas sim cartões disponibilizados numa espécie de ficheiro afixado nas paredes, divididos por cores. Lembro ainda das cores: branco para documentários, vermelho para terror, azul escuro para comédias, verde para ação, amarelo para ficção científica… Como era o responsável por escolher os filmes, meu pai passou a comprar para mim todas as revistas especializadas em cinema – “Cinemin”, “Video Business”, “Vídeo News”, “Set”… Eram muitas na época. Elas foram a minha grande formação. Depois fui montando a minha biblioteca de livros sobre cinema. Mas sempre gostei mais das publicações sobre diretores e a crítica de cinema. O livro de cabeceira é “Os Filmes de Minha Vida”, que reúne críticas assinadas por François Truffaut.
Queria ser jornalista e crítico de cinema. Na faculdade, sempre passava na biblioteca para ler os textos publicados nos cadernos culturais dos jornais. Criei, ao lado de Alfredo Manevy, Fernando Tostes, Cristiano Abud, entre outros, o Grupo de Cinema, em 1994, e lançamos um jornal que circulava em vários cinemas e centros culturais de BH. Minhas primeiras críticas saíram nessa época. Então sempre estive envolvido com a crítica de cinema, no fazer, na promoção e na defesa de seu valor.
Depois que deixei a coordenação das publicações da Abraccine, com a mudança de gestão em 2023, assumi a coordenação da coleção Lumière, da Letramento, voltada para o tema cinema. Aí pude abrir mais o leque e pensar em projetos mais individualizados, como o livro “A Arte da Crítica”, de Luiz Zanin, que reuniu textos curtos publicados no blog dele, com discussões relevantes sobre o exercício da crítica. É um livro obrigatório neste tema. Igualmente incontornável é o trabalho de Pedro Butcher, em “Hollywood e o mercado de cinema brasileiro: princípios de uma hegemonia”, que deveria ser adotado em toda aula sobre história do cinema. E já estamos trabalhando em vários outros projetos para 2025 e 2026.