Faz um tempo que não consigo fazer mais uma publicação da série de entrevistas com críticos de cinema. Fico feliz em, chegando no fim do ano, conseguir trazer para cá mais um episódio da série. Hoje converso com um crítico que, dentre os que estão em atividade, é um dos que mais gosto de ler.
Bruno Ghetti escreve na Folha e passou por diversos veículos importantes para a cinefilia, além de estar sempre cobrindo os maiores festivais de cinema do mundo. Também possuí um blog chamado Abrir o Olhar.
ENTREVISTA
Euller Felix: Você já passou por diversas publicações diferentes ao longo da sua trajetória enquanto crítico. Pode contar um pouquinho de como começou a sua relação com o cinema e quais são as maiores diferenças entre o momento em que você começou e os dias atuais da crítica?
Bruno Ghetti: Na verdade, eu sempre quis ser médico, como meu pai, mas foi só depois de cursar um semestre na faculdade de Medicina que fui de fato perceber que aquilo não era para mim. Como gostava de escrever, aí optei por fazer Jornalismo. Na faculdade nova, vi que precisaria me especializar em alguma área, então, por afinidade, fui pro jornalismo cultural, com ênfase no cinema. Embora eu nunca tenha sido um cinéfilo tradicional, a partir dos 19 anos eu comecei a ver muitos filmes e ler muito sobre cinema, então aí que tudo começou. Profissionalmente, minha primeira chance veio em 2003, quando saí do Rio e fui a São Paulo para fazer por três meses o Programa de Treinamento da Folha de S. Paulo. Mas logo depois que acabou, já consegui uma vaga na Ilustrada, como redator e repórter. Não cheguei a escrever críticas nessa fase, mas já fui me enveredando para a parte de cinema. Tanto é que, depois, trabalhei editando a Revista de Cinema, depois fiquei três anos no jornal Agora, que era da Folha, mas voltado a um público mais popular. Ali eu comecei a escrever de fato críticas, cheguei até a ter uma coluna, com foto minha e tudo, então meus primeiros textos críticos foram no Agora. Depois fui editar Cultura no jornal Metro, e desde que saí me fixei como freelancer. Há cinco anos voltei pro Rio, mas o veículo pra onde eu mais escrevo continua sendo a Folha de S.Paulo. Sou do tempo em que não tinha rede social, então a gente esperava as críticas da grande imprensa para saber como um filme estava sendo recebido. Hoje em dia, tudo mudou demais, e com essa “democratização” das opiniões de todo mundo, dos palpites de qualquer um sobre qualquer assunto, a figura do crítico profissional foi muito prejudicada.
Euller Felix: Uns dias atrás eu vi um comentário seu que me deixou curioso, e essa vai ser meio que um complemento ao final da pergunta anterior. Você disse que o Letterboxd seria uma espécie de “túmulo da crítica”, eu tento usar ali mais como um diário do que vi no ano e tal, mas vejo que tem muita gente que até tenta usar aquilo seriamente. Como você vê esses espaços como o Letterboxd e as redes sociais para a publicação de críticas e reflexões sobre cinema?
Bruno Ghetti: Infelizmente, a maior parte das pessoas usa o Letterboxd para dar cotações aos filmes e ver as das outras pessoas. E quanto mais seguidor a pessoa tiver, mais respeitada a opinião dela tende a ser, o que é uma lástima enorme. Quando eu disse que é o túmulo da crítica, é porque ali você reduz ao máximo o pensamento sobre um filme, que passa a ser meramente a atribuição de uma cotação, no máximo colocando do lado alguma frase espirituosa ou engraçadinha para dar uma noção do motivo pelo qual você deu a nota. Não é o que me interessa, nem como crítico nem como leitor. Porque eu vejo a crítica como um gênero textual – ou seja: é texto, você precisa desenvolver sua argumentação no seu texto. Mesmo que seja um texto verbal, no caso dos youtubers, mas sempre é preciso um encadeamento de ideias. Agora, sair dando estrelinha e ficar vendo quantas estrelinhas Fulano de Tal deu pode até ser curioso, divertido, mas definitivamente não é crítica. Sei que as coisas são muito corridas, ninguém tem tempo para nada, mas o pensamento humano não se faz com superficialidade. Gasta tempo e gasta energia, que é tudo que os cinéfilos das novas gerações menos querem, me parece.
Euller Felix: Essa é uma pergunta que faço sempre para tentar entender um pouquinho das referências das pessoas que entrevisto. Quais são os livros ou textos que foram fundamentais para a sua formação?
Bruno Ghetti: Como eu disse, minha cinefilia é atípica, porque ela se deu por alguns filmes que vi esparsamente pela adolescência, mas sobretudo pelo que eu vi já na época da faculdade. Que foi também quando eu comecei a ler sobre cinema, e aí já digo o primeiro livro do tema que eu li, com toda humildade do mundo, porque eu sabia que não entendia nada do assunto: “O que É Cinema”, da coleção Primeiros Passos, escrito pelo Jean-Claude Bernardet. Que foi a melhor maneira possível de começar a ler sobre cinema. Depois, me foram de grande importância, também, “Compreender o Cinema”, do Antonio Costa, e “A Estética do Filme”, organizado pelo Jacques Aumont. E depois, claro, esses teóricos fundamentais, tipo Serguei Eisenstein e André Bazin, além de sempre críticas – de um pessoal mais das antigas, tipo Manny Farber, Pauline Kael, o pessoal da Cahiers du Cinéma, em todas as fases, mas também dos ainda em atividade, como Stephanie Zacharek, Peter Bradshaw e Jonathan Rosenbaum. Além dos brasileiros: Paulo Emílio Salles Gomes, Ely Azeredo, Sérgio Augusto e Inácio Araújo, e por aí vai.
Euller Felix: Para você, qual é a função e o objetivo da crítica de cinema?
Bruno Ghetti: Eu gosto muito da definição que o Inácio Araújo tem sobre a crítica, que é você procurar desvelar o “não dito” em um filme. O que está em um filme, mas que não é tão facilmente perceptível, mas que aquela obra traz em si, e que cabe a nós, críticos, procurar e problematizar. Claro, um filme também é o que ele “diz”, mas tem sempre alguma coisa meio escondida e gritando para vir à tona – ao menos, os melhores filmes costumam ter isso. A crítica deve jogar luz sobre essas questões e lançar um debate, uma proposta de discussão, não acho necessariamente que deva ser uma sentença definitiva. Claro que julgamento é importante, mas não é tudo. A crítica é o prolongamento do filme, acho que nossa classe profissional faz parte da cadeia cinematográfica nesse sentido: escoar para a esfera das ideias e da discussão o que a obra de arte traz presa dentro de si.