Com a capitulação de Hirohito e o início da ocupação estadunidense do Japão em 1945, o jugo do ultranacionalismo sob as formas de produção da animação estava encerrado, todavia, isso não era necessariamente uma boa notícia para a indústria e seus animadores, uma vez que os estadunidenses simplesmente substituíram um órgão controlador por outro, instaurando o CIEE, Civil Information and Educations Section, que seria responsável por controlar qualquer fomento e censurar os filmes que desviassem do interesse dos ocupantes (1). Não apenas isso, mas a caça aos criminosos de guerra e filmes que endossassem o ultranacionalismo levou a destruição de milhares de filmes, muitos de animação. Num cenário de terra arrasada em termos de fomento, condições de realização, equipe, e acima de tudo, identidade nacional, é que a animação japonesa começa a se reconfigurar sob duas frentes distintas: a animação ficcional majoritariamente independente e de propósito artístico privilegiado, e a animação instrucional e educacional financiada pelos Estados Unidos ou direcionada pelas novas políticas democráticas por ele impostas. Tal dicotomia estrutural se assemelha ao modelo-base da produção que perdurou no país de 1921 a 1939, com a diferença de que, em 1946, não mais havia uma diretriz estética clara a se seguir ou um projeto nacional sob o qual era preciso se acomodar discursivamente. Nesse contexto de pouca capacidade de produção, destacam-se dois curtas-metragens que marcam os caminhos seguidos pelo cinema durante a ocupação: “Sakura”, de 1946, realizado por Kenzou Masaoka na recém fundada Shin Nihon Doga-sha, também conhecida como Nishido, e “Gulliver Funtouki”, de 1950, dirigido por Tokio Kuroda e Shigeyuki Ozawa na então Kindai Eiga-sha com financiamento da Secretaria de Impostos do Japão em nome das novas políticas forçadas pelos estadunidenses no período (2).
Dentre as primeiras políticas impostas com impacto estético do que era ou não permitido realizar pelos Estados Unidos estava a proibição da retratação de valores feudais ou que tivessem qualquer semelhança com o que fora defendido pelo ultranacionalismo, o que inclui a produção de jidaigekis (os filmes que se passam antes do período meiji) em sua integridade (veto que permaneceria apenas até 1949). A seguir os principais símbolos do período, como o próprio monte Fuji tinham sua circulação restrita. Não era permitido mostrar os estragos causados ao país pelos estadunidenses e nem os traços evidentes da ocupação. Além disso, a ocupação iniciou um processo de reforma política que trouxe aspectos positivos como o incentivo a formação de sindicatos, uma reforma agrária superficial, um desmonte parcial e superficial das Zaibatsu, uma reforma tributária e concessão de direito ao voto as mulheres. Da mesma forma, foi incentivada a produção de filmes com caráter “democrático” como musicais no estilo estadunidense e filmes que criticassem a aristocracia japonesa (como “Anjo Ke No Butokai”, de 1946) (3). Todavia, várias dessas medidas, como as relativas aos sindicatos, seriam restringidas, junto com a suspensão aos vetos aos símbolos do imperador a partir de 1949 em função do expurgo vermelho japonês, uma caça aos comunistas e perspectivas radicais de esquerda disparada pela ameaça ao capital que representava a revolução Chinesa (4). Não obstante, a partir de 1948 com as medidas administrativas de Joseph Dodge, impuseram uma violenta austeridade que resultou em desemprego, redução do consumo doméstico falência de pequenas empresas (como os pequenos estúdios) e um aumento significativo nas taxas de suicídio (5).
É dentro desse primeiro momento de reconfigurações bruscas e reformas que Kenzou Masaoka, em novembro de 1945, funda a Shin Nihon Doga-sha, em Kyoto. A Nishido, como seria conhecida a produtora, teria uma vida relativamente curta produzindo de fato apenas até 1952 e deixando de existir oficialmente em 1956, todavia, ela foi fundamental como parte dos esforços para a reconstrução da indústria de animação e serviria de base para a fundação da Toei Doga, um dos mais importantes estúdios de animação japonesa da história. Desde o terremoto de Kanto, a maior parte da produção de animação estava concentrada em Osaka e Kyoto na região de Kansai (daí a ideia de “animação de Kansai” como recorte para o período clássico) e com o fim da guerra, não havia motivos para uma mudança integral de volta para Kanto e Tóquio, uma vez que Kyoto fora a cidade menos bombardeada e destruída dentre os grandes centros urbanos. A produtora foi formada com cerca de 100 funcionários que conglomeravam assim uma parte significativa dos animadores e profissionais da área cinematográfica à disposição (6). Os trabalhos na Nishido foram iniciados imediatamente e o primeiro resultado foi o curta-metragem sonoro em branco e preto “Sakura”, finalizado em 1946, mas que não recebeu uma distribuição oficial em território nacional uma vez que a Toho, que distribuiria o filme e que acabará de realizar uma parceria com Masaoka, engavetou a obra para não criar problemas com a censura da ocupação que via na produção pictórica do curta, referências demais ao tradicionalismo e ao ultranacionalismo (7). “Sakura”, todavia, foi um importante marco dentre as primeiras tentativas de reconstruir a indústria de animação ou lhe injetar algum ânimo de maneira a reiniciar uma produção frequente e concisa (8).
Kenzou Masaoka, por sua vez, pertence a Segunda Geração de animadores japoneses, ao lado de nomes como Sanae Yamamoto, Yasuji Murata e Noburô Ôfuji, e como muitos deles, começou sua carreira na década de 1920. Os destaques de sua produção, todavia, remetem ao período da Segunda Guerra Mundial com obras como “Benkei Tai Ushiwaka” (1939) e, principalmente, “A Aranha e a Tulipa” (Kumo To Chuurippu, 1943) lembrado pelo discurso racista concatenado na representação pictórica do vilão, a aranha, de traços afro-americanos caricaturais. Já no que tange “Sakura”, sua preferência por animar e produzir as formas sob uma música pré-gravada, algo remanescente da década de 1930 e da chegada do som, e a ideia de uma jornada imagética pastoral da primavera japonesa, conformam a obra. Para Clements, a escolha da primavera e o simbolismo das sakuras, as pétalas de cerejeira, indicam o desejo do realizador de representar um processo de renovação. Porém, a imagem das sakuras foram amplamente utilizadas durante a guerra como símbolo dos kamikazes, fazendo com que a base dessa significação não procedesse como desejado.
Composto por quase oito minutos ininterruptos de animação sem diálogos, “Sakura” retoma os insetos antropomorfizados com predominância do físico humano (como se usassem fantasias de insetos), vistos anteriormente na obra de Masaoka, e conduz um amanhecer rico em texturas, mas não distante dos aspectos plásticos que caracterizaram a maior parte da produção do início dos anos 1940. O que se destaca nesse tour das belezas cotidianas são os detalhes de elementos específicos, como as sakuras nas cerejeiras e, principalmente, os quimonos das jovens (que impõem um processo de animação bastante difícil). Essa escolha por uma riqueza de detalhes na vestimenta acompanha a animação japonesa desde os anos 1920, especialmente na obra de Noburô Ôfuji, e se mantém como uma das características mais reconhecíveis do cinema clássicos animado japonês (quando as estruturas de produção permitem sua presença), e se manterá como tal até a virada nos anos 1960. Outro aspecto interessante é o uso de movimentos rápidos de câmera, tanto pans, quando tilts que visam acompanhar as pontuações sonoras produzidas pela música.
Se em “Sakura” Masaoka tentava reconstruir a identidade do Japão no pós-guerra na animação sem fundos estatais, por outro lado a produção financiada pelo CIEE, ou incentivada por ele com fomento estatal, apresentava sinais mais claros do impacto cultural da ocupação. A partir de 1945 o Japão se torna um escoadouro para o cinema estadunidense que, apesar de não conseguir abocanhar mais de 50% da capacidade de exibição (ao menos não até 1980), ainda assim tomava para si uma parcela significativa de toda a exibição de filmes em território japonês. Doravante, sem capacidade de produção de longas-metragens animados, o pouco espaço dedicado a esses era ocupado por animações estadunidenses, da Disney principalmente, e alguns poucos filmes europeus, somando 18 deles lançados entre 1945 e 1958 (9). Reflexo desse mercado ocupado é “Gulliver Funtouki”, ou “Gulliver’s Great Activities”, de 1950.
Realizado por Tokio Kuroda e Shigeyuki Ozawa com financiamento da Secretaria de Impostos do Japão, o curta-metragem animado era uma encomenda com o aval e incentivo do CIEE que visava produzir a ideia de que pagar impostos era bom para a nova infraestrutura social japonesa (10). Como bem nota Clements, apesar de ter um discurso extremamente americanófilo, inclusive em sua estética, o filme era voltado para o público japonês. Sendo assim, é possível rastrear nesse filme uma genealogia da representação do ocidente, e mais especificamente a Europa (medieval, vitoriana, moderna ou uma combinação anacrônica dos períodos) como um lugar idealizado pelos japoneses, rico em mitologia e iconografia para a produção audiovisual, herança tão longa que permaneceu na animação até mesmo na obra de realizadores como Hayao Miyazaki. Em “Gulliver…” essa idealização se manifesta na emulação de uma determinada arquitetura, vestuário e infraestrutura social em particular mais próxima do imaginário pictórico da Europa como vendida para o estrangeiro do que da realidade, por exemplo, com cidades limpas, bem organizadas, com ar bucólico, pouco ou nenhum problema de violência urbana, e onde uma harmonia pastoral rege o cotidiano de relativa fartura. Nessa Europa paradisíaca todos falam o japonês perfeito e os traços físicos tendem a uma padronização anglo-saxã simplista, típica da animação do período. Essa característica, a posteiori, seria trabalhada sobre o conceito do Mukokuseki, ou seja, a “desnacionalização” do material animado e das referências raciais, históricas ou geográficas que permitam ao produto final uma melhor circulação pelo mercado global (algo que será fortíssimo e potencializado pela ficção científica) (11).
Diferente de “Sakura”, em “Gulliver…” há a pista sonora de diálogos sincronizados e sua utilização para a compreensibilidade da obra, mas está ausente a qualidade de detalhamento, tanto de elementos específicos, quanto do cenário. Este último, por sua vez, é mais pobre e chapado com traços simples e aquarelas generalizantes. A regra é a separação evidente entre figura e fundo por meio do animado e inanimado, uma comodity da animação. A chegada de um corpo estrangeiro que representa, inicialmente, uma ameaça devido ao desconhecimento de suas intenções e, posteriormente, sua incorporação positiva e construtiva na sociedade em questão (atos que Gulliver faz mais em boa fé do que buscando algo em troca), poderia ser interpretado como a relação do Japão com o “gigante” Estados Unidos que acaba vindo em seu auxílio (os próprios produtos levados aos nativos da ilha, como carros e remédios, parecem reforçar essa impressão). Com simplificações e sequências de movimentos muito mais duras, mecânicas e nada criativas, o filme não é um bom exemplo das futuras proposições da década, mas é um bom espécime do tipo de produto mais diretamente vinculado a ocupação em nível ideológico e discursivo.
“Sakura” e “Gulliver Funtouki” não resumem integralmente a produção de animações durante a ocupação estadunidense do Japão, mas são bons exemplos dos caminhos encontrados para manter a realização operante e, ao mesmo tempo, por meio dos reflexos vistos no discurso das obras, encontrar os novos caminhos do Japão após o ultranacionalismo e a derrota na Segunda Guerra Mundial. Mesmo com o fim parcial da ocupação em 1952, ainda levariam alguns anos para a animação japonesa encontrar o seu passo e suas “novas” formas, mas a raiz de uma série de escolhas e preferências pode ser melhor compreendida com o olhar atento para a produção desse curto e difícil período.
Notas
(1) – NOVIELLI, Maria Roberta. História do Cinema Japonês. 1. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007, pag. 131.
(2) – CLEMENTS, Jonathan. Anime: A History. 1. ed. Londres: BFI, 2013, pag. 84.
(3) – NOVIELLI, Maria Roberta. História do Cinema Japonês. 1. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007, pag. 134.
(4) – Disponível em: https://apjjf.org/-John-W.-Dower/2462/article.html (acessado em 06/05/2022)
(5) – CLEMENTS, Jonathan. Anime: A History. 1. ed. Londres: BFI, 2013, pag. 81.
(6) – CLEMENTS, Jonathan. Anime: A History. 1. ed. Londres: BFI, 2013, pag. 74.
(7) – CLEMENTS, Jonathan. Anime: A History. 1. ed. Londres: BFI, 2013, pag. 75.
(8) – CLEMENTS, J; MCCARTHY, H. The Anime Encyclopedia. 3. ed. Berkeley: Stone Bridge Press, 2006, pag. 555
(9) – CLEMENTS, Jonathan. Anime: A History. 1. ed. Londres: BFI, 2013, pag. 82.
(10) – CLEMENTS, Jonathan. Anime: A History. 1. ed. Londres: BFI, 2013, pag. 84.
(11) – CLEMENTS, Jonathan. Anime: A History. 1. ed. Londres: BFI, 2013, pag. 124.
*Raphael Cubakowic é professor, crítico de cinema e tradutor. Enquanto montador, foi responsável pelas obras “Fragmentos de Uma Metrópole”, “Hora Extra, “Pontos de Vista” e “Toda Sombra Parece Viva”. Foi também editor e produtor na Versátil Home Video por quatro anos, e além de escrever para sites e blogs, desde 2018 ministra aulas sobre história, estética e teoria do cinema.