A década de 1930 trouxe à animação japonesa uma série de desenvolvimentos técnicos e de estrutura de produção que seriam fundamentais para que ela superasse sua condição como meio prioritário dos curtas-metragens instrucionais e recuperasse suas possiblidades de criação ficcionais e expressivas enquanto estética. Dentre as novidades estavam a utilização do som sincronizado a partir de 1931 e a animação em celuloide a partir de 1933. Todavia, essas novas possiblidades vieram acompanhadas do crescimento e consolidação do ultranacionalismo como práxis e retórica nacional a partir da invasão da Manchúria em 1931 e o então início da Guerra dos Quinze Anos (1931 – 1945). Exemplo derradeiro dessa imbricação maldita entre uma busca por excelência técnica e o ultranacionalismo é o curta-metragem de maior sucesso comercial (1) do período, “Momotaro no Umiwashi”, de 1943, dirigido por Mitsuyo Seo, e que seria o campo de provas para a posterior realização do primeiro longa-metragem animado japonês: “Momotaro Umi no Shinpei” em 1945 (2).
Durante a década de 1920, mais especificamente de 1921 até o início da década de 1930, a animação japonesa possuía realizadores que heroicamente realizavam obras ficcionais voltadas ao entretenimento artístico. Todavia, o grosso da produção era formado por curtas-metragens instrucionais financiados por ministérios e leis de incentivo específicas. Com as mudanças tecnológicas e a popularização de festivais dedicados à exibição de animações para o público infantil, a animação japonesa retomou uma produção mais robusta de obras ficcionais com pretensões artísticas mais significativas, descolando-se minimamente da produção quase exclusiva de filmes instrucionais. Todavia, essa produção da década de 1930 passava também a ter de reportar-se ao crescente Ultranacionalismo. Em 1939 é implementado o Eiga-Ho, a “Lei Sobre o Cinema” onde a censura institucional ganhava dimensões sem precedentes e várias de suas diretrizes passavam a afetar a animação. Entre elas estavam a necessidade de toda a equipe do filme ser devidamente licenciada para a produção, o fato de o filme ter de “nutrir o espírito nacional”, abrindo ainda mais as possibilidades de censura, que agora era realizada na fase de escrita do roteiro, além da exigência de uma qualidade técnica comparável à produção internacional, mais especificamente o produto estadunidense e francês (3). O Eiga-Ho também limitava violentamente as produções realizadas como um todo e os orçamentos e valores de produção de 1939 a 1945 refletem a ascensão e queda do poderio militar do Japão ultranacionalista com um pico em 1942 e uma queda vertiginosa ao fim de 1943.
Uma perspectiva imperialista nos discursos e temas das animações já é perceptível em uma série de obras do início da década onde o Japão fulgura como grande nação predestinada à conquista e “defesa” de toda a Ásia contra o inimigo estrangeiro, algo visto em filmes como “Sora no Momotaro” (1931), “O-Atari Sora no Entaku” (1932) ou “Momotaro vs Mickey Mouse” (1934). Em outras animações é frequente uma carnavalização da guerra na China como um empreendimento interessante e pouco perigoso para os jovens como em “Sora no Shanghai Sensen” (1938). A militarização da animação também vai sendo normalizada com animais antropomorfizados que aludem a faixas etárias mais baixas utilizando equipamento militar ou em situações de confronto, dos quais a série de curtas-metragens protagonizados por Norakuro é bastante marcante a partir de 1933. Sendo assim, não demoraria até que uma obra viesse concatenar e consolidar todo esse discurso.
É precisamente nesse pináculo entre 1942 e 1943, onde as condições de produção cada vez mais extremas tornam as necessidades de atender a certos discursos ainda mais fortes, que surge “Momotaro no Umiwashi”, uma encomenda direta do Ministério de Relações Públicas da Marinha Japonesa, financiado pelo Ministério da Marinha (4) e dirigido por Mitsuyo Seo dentro de sua produtora, a Geijutsu Eigasha. Numa situação substancialmente crítica onde a celuloide e a disposição de recursos para a realização de obras artísticas era limitadíssimo, o filme consegue ser realizado com um alto nível técnico graças ao fato de a Marinha ter financiado integralmente os seus custos.
Por meio da produção de “Momotaro no Umiwashi” foi possível consolidar uma inovação técnica da animação japonesa criada por Mochinaga para a produção de “Ari-chan” (1941) que consistia em uma câmera alta posicionada sobre as placas de vidro que mantinham as imagens fixas, onde estavam os celuloides e os componentes a serem animados na tradicional estrutura em forma de beliche. A inovação de Mochinaga foi aumentar muito a altura da câmera para que se pudessem usar placas de vidro em alturas diferentes criando maior ilusão de profundidade. Nesse caso, parte do chão do estúdio teve de ser removido para dar conta da estrutura. A distância real, convertida em artificial, possibilitava o uso de elementos tridimensionais como objetos ou galhos de árvores. O design original de Mochinaga possuía cinco níveis incluindo o mais alto no qual era posicionada a câmera, assim estruturando as composições em close, planos médios, planos abertos e o plano de fundo (5). Apesar de todo o apoio financeiro que permitiu tamanha empreitada (que seria reutilizada no filme seguinte, “Momotaro Umi no Shinpei”) ainda assim a celuloide era rara e muitas folhas tiveram de ser recicladas antes de utilizadas, o que explica o fundo borrado ou irregular de uma série de passagens e quadros, aspecto reforçado pelo sistema de beliche em grande escala. Já na abertura do curta, com as silhuetas contra o céu nublado, nota-se a presença de quadros mais sofisticados em termos de composição e arranjo dos corpos na relação figura-fundo com encenação e detalhes em todas as três instâncias da imagem.
O filme traz como protagonista um corpo coletivo de soldados com eventual destaque para um ou outro conforme a necessidade de exaltação de suas ações heroicas a fim de suprir o sen’ikoyo, a exaltação da combatividade (6). Esse corpo coletivo, somado à figura heroica e divina de Momotaro, que aqui supre a representação do Imperador e do corpo militar nacional, produz um choque entre o realismo pictórico da retratação dos navios e aviões em sua infraestrutura mecânica, e os personagens que compõem esse corpo nacional, ou seja, animais antropomorfizados e infantilizados com traços mais simples e arredondados. Essa dicotomia engendra indiretamente a retratação idealizada da guerra onde o conflito, as armas e sua dinâmica possuem certa verossimilhança enquanto que não há mortes e violência explícita em quadro, apenas a vitória gloriosa ou a morte distante das lentes. Como aponta Standish (citada por Clements), parte do objetivo desse tipo de retratação era incentivar os pais a permitir a entrada dos filhos nas academias militares ou não os chocar a ponto de estes impedirem os filhos de fazê-lo (7), e como nota Novielli (8), a orientação dentro dos kokusaku-eiga e o genki-eiga era não mostrar violência demais, mas também não eliminar completamente o conflito da diegese, tentando buscar uma espécie de equilíbrio plenamente atrativo, algo facilitado pelas possibilidades da animação. Apesar das pontuais trapalhadas dos personagens, reina a ideia de disciplina e comprometimento essencial à construção do ideário ultranacionalista do soldado japonês (como na cena em que os macacos se coordenam para o ato de sabotagem em terra). Nesse sentido, há uma iconografia elementar em operação que inclui a bandeira, os sabres, a bandana do sol nascente e a pintura da fuselagem dos aviões. Essa mesma dicotomia entre a verossimilhança e a infantilização fantástica suavizadora pode ser observada na sequência rumo à “terra dos demônios” que alterna entre certa tensão produzida pela antecipação do confronto que se aproxima, com os planos sóbrios e escuros em meio às nuvens, e a subtrama cômica que envolve os personagens usando brinquedos e o auxílio à mãe pássaro que perde seu filho na asa do avião. Essa subtrama traz uma implicação ética que serve a dois propósitos: primeiro, coadunar a ideia de boa índole do corpo militar em termos éticos e, segundo, o respeito quase religioso pela natureza que, como fica evidente no desfecho, está ao lado dos japoneses em sua empreitada divina.
A ideia de um ataque surpresa a um porto inimigo despreparado onde tremula uma versão simplificada da bandeira estadunidense torna difícil não associar a narrativa ao ataque a Pearl Harbor. Nesse caso, em contraposição ao disciplinado e determinado corpo nacional de soldados japoneses, os estadunidenses são caracterizados como humanoides incompetentes, bêbados e despreparados, com direito a utilização do personagem Brutus, de “Popeye”, como símbolo da liderança inimiga. Como é de praxe, a militarização está muito presente no manejo de pistolas, metralhadoras e as próprias bombas que são inseridas como algo naturalizado no universo desses bichinhos fofinhos rumo à guerra. Há uma grande valorização das animações das bombas e torpedos marítimos, onde supostamente foram usadas fotos e filmagens do ataque de fato como referência para as composições e o design mecânico (9). A sequência de ataque também inclui breves alusões aos kamikazes como o avião mergulhando encenado frontalmente e o macaco que redireciona a bomba sob ela e é lançado ao ar ao acompanhar a explosão no navio inimigo, cenas que tornam o discurso belicista ainda mais abjeto. O retorno em segurança e o regozijo celebratório coroam a qualidade da estratégia e execução militar japonesa e todo o ideário ultranacionalista que a acompanha como uma grande chamada ao recrutamento militar, assim como a apaziguação dos ânimos dos pais preocupados com o possível empreendimento suicida de seus filhos.
Sendo assim, “Momotaro no Umiwashi” apresenta de maneira translúcida a forma como o discurso e a estética própria ao ultranacionalismo japonês, que já circulava desde 1931, se manifesta na animação, compreendida também pelos avanços técnicos proporcionados pela produção de Mochinaga e pelo domínio linguístico do meio como demonstrado por Mitsuyo Seo.
Notas
(1) – CLEMENTS, Jonathan. Anime: A History. 1. ed. Londres: BFI, 2013, pag. 64.
(2) – Existem dúvidas acerca da possiblidade de “Momotaro Umi no Shinpei” ser de fato o primeiro longa-metragem animado japonês, todavia, pela falta de evidência determinante, costuma-se considerá-lo dessa forma.
(3) – CLEMENTS, Jonathan. Anime: A History. 1. ed. Londres: BFI, 2013, pag. 54.
(4) – CLEMENTS, Jonathan. Anime: A History. 1. ed. Londres: BFI, 2013, pag. 62.
(5) – CLEMENTS, Jonathan. Anime: A History. 1. ed. Londres: BFI, 2013, pag. 63.
(6) – NOVIELLI, Maria Roberta. História do Cinema Japonês. 1. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007, pag. 104.
(7) – CLEMENTS, Jonathan. Anime: A History. 1. ed. Londres: BFI, 2013, pag. 57.
(8) – NOVIELLI, Maria Roberta. História do Cinema Japonês. 1. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007, pag. 109.
(9) – Até 1961 ainda não existia um crédito específico para o Design Mecânico, mas é evidente a preocupação com a fidelidade de formas e funcionamento dos elementos militares.
*Raphael Cubakowic é professor, crítico de cinema e tradutor. Enquanto montador, foi responsável pelas obras “Fragmentos de Uma Metrópole”, “Pontos de Vista” e “Toda Sombra Parece Viva”. Foi também editor e produtor na Versátil Home Video por quatro anos, e além de escrever para sites e blogs, desde 2018 ministra aulas sobre história, estética e teoria do cinema.