Não são poucos os colegas da crítica que dizem que na verdade, o que importa mesmo é a linguagem cinematográfica e não o que um filme diz ou se ele é ou não importante dentro de um determinado contexto. Que a representatividade ou temas contundentes em uma obra não é o mais importante. Para esses colegas eu queria dizer que, assim como a sociedade também evoluiu em suas discussões, nós, críticos também precisamos evoluir.
E quero explicar uma coisa, usei no masculino o “crítico” de propósito, afinal, é apenas dos homens da crítica que eu vejo essa postura de preferir falar de filmes e questões outras que não as da representatividade dentro do cinema. Me parece até uma discussão do filme da “Enola Holmes“, quando Sherlock (Henry Cavill) está discutindo com Edith (Susie Wokoma) sobre o fato do detive não se envolver nas questões políticas, segundo ele, por achar chato. A resposta de Edith para mim é uma resposta a maioria desses críticos: vocês não falam pois é cômodo e não querem mudar um mundo que os favorece.
Em todas as minhas entrevistas com críticos eu faço a pergunta: para você, qual é a função da crítica? Tenho muitas respostas interessantes, diferentes umas das outras ou mesmo que se complementam, acho isso tudo maravilhoso para o debate sobre nossa função. Quero agora, dizer qual seria minha resposta. A crítica, como disse Bazin, deve prologar uma obra. Deve trazer um debate sobre aquele determinado filme e, a partir dai, prologar a existência desse filme. Prolongar o debate sobre a obra ou sobre um fato levantado pelo filme. E aqui entra a nossa escolha e posição política como críticos. Não política de eleitoral, mas de escolha. Devemos saber qual o cinema que queremos que continue existindo após o “fim” da projeção. Cabe ao crítico e aos argumentos dele essa escolha.
Inclusive, uma falha de muitos críticos e pesquisadores do cinema é o de ignorar, sistematicamente, diversas contribuições de grupos minorizados. Para confirmar isso que falo basta abrir um dos inúmeros livros sobre a história do cinema e contar lá, quantas páginas (sendo bem esperançoso, já que em muitos casos não dá nenhuma) estão dedicadas a diretoras e realizadoras em geral. Quanto há de discussão nesses livros sobre as contribuições de Alice Guy Blache, Agnes Varda, Ida Lupino, Louis Weber, entre outras?
Qual é o sentido de falar sobre a história do cinema frances e não citar as contribuições da Varda? Como falar sobre filme-ensaio sem citar as contribuições dela? Como falar sobre os primeiros filmes da história do cinema, com todas as linguagens se desenvolvendo e não citar a Alice Guy Blache? E quando muito coloca só uma linha por causa do grande “A Fada do Repolho”?
Estou falando de livro. Registro que fica para uma eternidade e que é usado e referenciado em pesquisas, acadêmicas ou não. A velha cinefilia se contenta em falar somente dos mesmos diretores do que ampliar o seu repertorio. E quando digo “velha cinefilia” não estou me referindo somente a pesquisadores e críticos de antigamente. Me refiro também a alguns jovens que caiem na mesma armadilha.
Em cursos então nem se fala. Vemos a mesma formula da história do cinema: Lumière, Méliès e Griffith. A história do cinema parece que foi feita apenas por homens brancos.
Quando escolhemos ignorar filmes que pretendem fazer uma discussão politica e social mais ampla, ignoramos também uma parcela da história do cinema e também dos realizadores que fizeram esses filmes. Quando vejo as pessoas falando: “a crítica precisa se voltar somente para a arte” penso: que arte não é politica e social? Imagino que esses pesquisadores quando vão falar dos clássicos russos, como Eisenstein por exemplo, falam somente dos atributos técnicos do filme? Todas as questões politicas do filme são ignoradas? Considero isso um tanto quanto vazio.
A crítica para mim só faz sentido e cumpre o seu papel quando consegue compreender e defende filmes que alinhem a sua linguagem com as questões politicas do seu tempo. Dizer “deixemos de falar de politica e agora vamos falar de cinema” não faz sentido nenhum, o cinema é politico.
Pensando na história do cinema muitos movimentos cinematográficos só existiram pois os autores olharam o mundo ao redor e colocaram a sua visão da história dentro dos filmes. O seu sentimento de como aquela sociedade estava dentro do sentimento dos personagens e do clima da história. É impossivel desassociar as questões do mundo com as histórias do cinema.
É claro que aqui eu não estou dizendo os críticos devem ignorar as linguagens e todas as técnicas do cinema em prol das pautas da sociedade, muito pelo contrário, defendo que os críticos deem mais espaço para filmes que utilizam a linguagem como forma clara de representar uma ideia. Temos que dar espaço para filmes e cineastas que tem algo a dizer e nos mostrar.
Precisamos escrever sobre o real, sobre as pessoas que estão produzindo o cinema hoje.
O cinema e a crítica que eu defendo é inclusiva, cabe tudo, todos, todas e todes, onde as pessoas se sintam a vontade de escrever e de criar. O ato de filmar, produzir, distribuir, atuar e tudo mais dentro do cinema é politico. A crítica também deve ser.