Penso que estou tendo uma ótima oportunidade aqui com essas entrevistas. Cada vez que converso com algum crítico eu aprendo mais sobre a função da crítica de cinema e fico com um monte de dúvidas. A crítica “sempre está em crise”.
Na entrevista de hoje eu converso com Pedro Butcher que é um dos críticos mais importantes do nosso país. Ele fez parte do Filme B, site sobre o mercado de cinema no Brasil. Além do Filme B, recomendo também o livro sobre a retomada do cinema brasileiro que ele escreveu em uma coletânea “Folha Explica”.
As respostas dele me fizeram pensar, espero que surta o mesmo efeito em vocês.
ENTREVISTA
Euller Felix: Recentemente você ministrou um curso pela ABRACCINE sobre a construção da hegemonia hollywoodiana nos cinemas dos Estados Unidos e do Brasil. Se eu não me engano esse é o tema da sua tese de doutorado né? Você pode falar um pouco sobre os resultados da sua pesquisa?
Pedro Butcher: Exato, o curso ministrado na Abraccine foi baseado na pesquisa de doutorado, que resultou na tese Hollywood e o mercado de cinema brasileiro: princípio(s) de uma hegemonia, defendida em junho de 2019. Minha volta à universidade depois da graduação, primeiro no mestrado, na UFRJ (que concluí em 2006) e mais recentemente no doutorado, na UFF (defendido em 2019) é em parte um prolongamento da minha experiência no Filme B, site especializado em mercado de cinema no Brasil onde trabalhei de 2001 a 2014. Esse contato diário com o funcionamento do mercado despertou muitas perguntas que foram o impulso para que eu realizasse o desejo que sempre tive de não parar de estudar. Tive a sorte de desenvolver minhas pesquisas de pós-graduação em um momento em que ainda havia bolsas e incentivo à pesquisa no Brasil, o que foi fundamental para que eu tivesse a possibilidade de uma dedicação maior aos estudos (mesmo que as bolsas não fossem o suficiente para que eu parasse de trabalhar, permitiram que eu separasse um tempo fundamental para as leituras, pesquisas e a escrita). Tanto o mestrado quanto o doutorado foram motivados para uma tentativa de responder a perguntas um tanto óbvias, mas que em geral são respondidas com superficialidade. No caso do mestrado, a pergunta era: por que a TV Globo, depois de tantos anos sem demonstrar qualquer interesse pelo cinema brasileiro, resolveu fundar a Globo Filmes? No caso do doutorado, foi uma pesquisa de caráter mais histórico, para entender por que a presença de mercado de Hollywood é historicamente majoritária no Brasil (e isso é considerado algo praticamente “natural”). Graças a uma bolsa de doutorado sanduíche da Fulbright, tive a oportunidade de passar nove meses na Universidade da Califórnia em Santa Barbara, ponto de partida para realizar pesquisas em arquivos espalhados pelos Estados Unidos, em busca de documentos que pudessem lançar alguma luz sobre a instalação no país das filiais de distribuição dos grandes estúdios, a partir de 1915. Uma fonte fundamental foram os relatórios consulares sobre o mercado de cinema no Brasil produzidos para o Departamento de Comércio americano, nas primeiras décadas do século XX. Queria também tentar entender por que Hollywood se tornou hegemônica no próprio mercado americano (outro dado tomado como “natural”). Em parte, a pesquisa me trouxe com muita clareza o papel da indústria na definição de algumas convenções que também tomamos como “naturais”, como a hierarquização entre os formatos ficção/documentário, longa-metragem/curta-metragem etc. Se já tinha essa questão intuitivamente na minha atividade como crítico e curador, hoje acredito com ainda mais força que é parte do papel da crítica questionar e trabalhar para dissolver ou pelo menos diminuir essas hierarquias. Outra conclusão importante da pesquisa, acho, foi desconstruir a ideia de que o cinema hollywoodiano nunca contou com apoio do Estado. Procuro demonstrar, com documentos e fundamentação teórica, a partir do conceito do “Estado promocional” da historiadora Emily Rosenberg, como o Estado teve um papel fundamental para a expansão e consolidação de Hollywood no mercado internacional, facilitando sobretudo o fornecimento e a circulação da informação.
Euller Felix: Como você vê a migração da reflexão sobre o cinema ter migrado da mídia tradicional impressa para a internet?
Pedro Butcher: Primeiro, fico assombrado e muito feliz que a crítica de cinema ainda desperte um interesse grande entre a juventude, diante de tantas mudanças. Essa migração para a internet foi de certa forma inevitável com a crise da mídia impressa tradicional, e tivemos a sorte de aparecer uma geração muito boa bem no começo dessa migração – me refiro especificamente à Contracampo, que ajudou a formar novos críticos e estabeleceu um patamar de qualidade de reflexão bastante alto, mesmo (e talvez principalmente) tendo provocado discordâncias, dissidências etc. Hoje tenho uma sensação bastante ambígua: sobretudo com a desvalorização dos sites e blogs e a migração quase integral para as redes sociais (Letterboxd, Film Twitter, um pouco de Facebook, plataformas de música no caso dos tantos podcasts que apareceram). Há muita coisa boa, mais do que antes até, segue uma renovação de geração fundamental, super rica, mas há também uma forte sensação de uma nova mercantilização da atividade. No fundo, está todo mundo alimentando plataformas com informação e “conteúdo”, ou seja, está todo mundo trabalhando, e trabalhando muito, sem ganhar um tostão por isso (são pouquíssimos os que conseguem “monetizar” sua produção) e principalmente enriquecendo os grupos que possuem e administram essas plataformas.
Euller Felix: Qual é a função da crítica de cinema e qual é o papel dela na sociedade de hoje?
Pedro Butcher: A impressão que eu tenho é de que a crítica vive um momento não muito diferente de outras atividades na sociedade contemporânea – isto é, vive um momento polarizado, no caso, entre os que defendem a “cinefilia” tradicional e a política dos autores, e os que questionam e combatem esses valores. Fico bastante triste quando esse debate se reduz a uma defesa de territórios, o que infelizmente me parece ser o tom da maioria dos embates (e/ou dos silêncios) em torno da questão; fico bastante feliz quando existe uma abertura para se entender as distorções da “política dos autores” e as imensas limitações da cinefilia “clássica”, por um lado, e uma abertura para se entender também que as pautas representativas, fundamentais para a abertura de debates e para uma efetiva mudança, muitas vezes não dão conta de determinadas complexidades, principalmente quando estamos lidando com arte. De resto, acho que o papel primordial da crítica continua sendo resultado da vontade de dividir uma paixão, e de um desejo de prolongar um choque estético. Cabe à crítica também estar sempre em posição de dúvida e de questionamento, inclusive em relação aos seus próprios gostos e opiniões. E por fim, mais do que nunca, desempenhar também um papel político, que muitas vezes, nos dias de hoje, se expressa pela atividade da curadoria, um desdobramento fundamental da ação crítica no contexto contemporâneo.