Desde 2018 eu produzo o Necronomiconversa, que começou apenas como podcast e hoje é um site com o podcast, críticas, notícias, textos sobre tudo que faz parte do gênero do horror, desde o cinema, livros, quadrinhos e séries. Enfim, tudo que faz parte do horror é assunto por lá.
Com o Necronomiconversa eu conheci muitas pessoas que produzem conteúdo sobre horror no Brasil. Uma dessas pessoas é o crítico de cinema e o pesquisador Marcelo Miranda, que tem um trabalho muito interessante com o cinema de gênero. Já tive muitas diálogos com ele sobre horror, sobre cinema e sobre a crítica, as perguntas dessa entrevista fizeram parte de muitas dessas discussões.
Aliás, um agradecimento ao Marcelo por estar fazendo várias pontes com críticos que eu estou entrevistando aqui.
O Marcelo Miranda é jornalista, crítico, curador e pesquisador de cinema. Escreve em diversos veículos impressos e virtuais e em vários livros e catálogos. Realiza o podcast “Saco de Ossos” e participa do “Hora do Espanto”, você pode encontrar todos os links dele aqui.
ENTREVISTA
Euller Felix: Nos conhecemos por uma paixão em comum: o cinema de horror, inclusive temos uma produção junto, a coletânea “O Melhor do Terror dos Anos 80”. Você tem também o “Saco de Ossos Podcast” onde entrevista realizadores, pesquisadores e aficionados pelo gênero. E junto com o Rodolfo Stancki e o Paulo Biscaia Filho você faz o podcast “Hora do Espanto”. Poderia nos dizer um pouco sobre essa sua relação com o horror?
Marcelo Miranda: A minha relação com o horror é orgânica. Sempre tenho dificuldade de apontar um ponto inicial disso, justamente porque acho que isso não existe pra mim. Claro, há filmes do gênero que me marcaram ainda muito jovem, mas eu não penso neles como algum tipo de “estalo” pra eu gostar do gênero. Simplesmente são filmes (e quadrinhos e livros) que fizeram parte da minha formação cultural de um jeito bem espontâneo e autodidata (ninguém na minha família curtia filmes, eu aprendi a gostar literalmente por causa da televisão). A questão é: como o horror é muitas vezes visto como algo “estranho”, acaba por chamar bem mais atenção, em certos momentos da sua vida. Pra mim, ver e gostar de filmes como “O Massacre da Serra Elétrica”, “Platoon” ou “Django” (pra ficar em títulos que eu vi mais ou menos na mesma época, fosse em TV ou VHS) estava no mesmo patamar. Por sorte, na minha casa, não havia muito “controle” do que eu via, então eu fazia todas as minhas escolhas meio aleatoriamente, e isso ajudou bastante num caminho de cinefilia tão anárquico (pelo menos no começo) quanto espontâneo (obviamente eu hoje racionalizo isso tudo, mas na época era só curtição de juventude). O horror e o fantástico sempre exerceram uma atração muito grande em mim, talvez um pouquinho mais que os demais gêneros, por me apresentar filmes provocativos, que me deixavam pensando neles por dias e dias, ou até mesmo chocado e abalado (pense um menino de 11 anos lidando com a morte do cavalo do Atreyu em “A História sem Fim” ou o David Bowie ameaçando um bebê em “Labirinto”).
Como eu mesmo me programava, arrisquei algumas coisas que certamente não eram adequadas pra minha idade, o que era ainda mais excitante, fosse em casa ou na única sala de cinema que tinha na minha cidade. (O primeiro filme de horror/fantasia que eu vi em cinema foi “Alien 3”, ainda no interior de Minas; eu tinha 12 anos e só consegui entrar, sozinho, porque eu era frequentador assíduo de todos os outros filmes de classificação livre, e por isso o dono do cinema me conhecia bastante e me deixou ir escondido num de classificação para adultos…).
Fiz faculdade de jornalismo e enveredei pela crítica e noticiário de cinema e literatura. O horror seguiu como um “hobby”, como atividade paralela da minha vida profissional (ainda que continuasse, sem intervalos, vendo e estudando o gênero, com filmes, livros de ficção e teóricos etc etc). Fora algumas ações de trabalho com o horror aqui e ali, foi só em 2018 que decidi de fato produzir conteúdo específico sobre o gênero e bolei o “Saco de Ossos” com intuito de fazer uma genealogia, por meio de entrevistas bem amplas, do terror realizado no Brasil. Era, até então, um projeto inédito no ambiente de podcasts brasileiros (e acho que ainda é, em certa medida). O “Saco de Ossos” me fez enveredar mais profundamente na produção de conteúdo do gênero, o que tem rendido textos, debates, aulas, novos podcasts (como o “Hora do Espanto”) e um monte de outras coisas que enfim me deixam colocar em prática profissional uma relação com o horror que sempre foi essencialmente pessoal.
Euller Felix: Ainda falando sobre o cinema de gênero, muitas pessoas dizem erroneamente que o cinema de horror é subestimado, o que você pensa sobre essa afirmação e para você qual é o motivo de isso ser uma fala tão difundida?
Marcelo Miranda: É uma questão complexa que demandaria um aprofundamento digno de um curso. O que eu arriscaria dizer, em resumo, é que todo gênero artístico que lida diretamente com o corpo tende a causar algum tipo de perturbação ou incômodo. Nesse sentido, o horror, o erotismo e a pornografia são abordagens da imagem e dos sons que tratam diretamente do corpo, de seus sintomas, reflexos, estímulos, instintos, são coisas que todo ser humano compreende e sente – e, em muitos casos, recalca. Isso se dá dentro da construção estética e também fora, ou seja, todos conhecemos a dor de um corte na pele, ou a sensação de excitação de uma pele com outra pele, ou do prazer do orgasmo. Voltando a uma palavra que citei antes, é tudo no campo do orgânico. E aí eu sinto que o recalque em torno dessas sensações (dentro e fora da tela) muitas vezes resvala para a apreensão do horror, como se ele fosse uma coisa “menor” por estar tratando dos efeitos (de medo, violência, repulsa) no corpo. Claro que não é uma coisa que as pessoas fiquem pensando a respeito, creio estar no nível da inconsciência: é muito mais “agradável” e recompensador chorar num drama com algum personagem sofrendo de amor ou de doença do que suportar o vômito verde da Regan em “O Exorcista” – ou ela enfiando uma cruz na vagina quando possuída pelo Pazuzu. Então eu acredito que isso tudo (e mais um tanto de coisas) influi na recepção do gênero como “subestimado”, como algo “menor”: porque é mais “adequado” não levar isso a sério. Porém, em termos de recepção e interesse, é um dos gêneros mais populares em todos os tempos, e certamente o mais longevo, até por sempre se reinventar a cada década desde a invenção do cinema. Tem uma outra coisa que pode dar a sensação de que o horror é subestimado: trata-se do único gênero em que quase todo espectador ocasional acha que entende e domina melhor que qualquer outro. O motivo disso? Um pouco de empáfia e muito de recalque.
Euller Felix: Já conversamos uma vez sobre o ofício da crítica, de que não há uma fórmula ou método, mas que ao mesmo tempo não é uma coisa bagunçada. O que você considera ser uma boa crítica?
Marcelo Miranda: A crítica que eu tento praticar e que eu gosto de defender é aquela que não tem outra serventia senão amplificar a visão e criar perturbações em torno da obra. É muito comum me perguntarem “pra que serve a crítica?”, e eu costumo responder “pra nada, e por isso ela é tão essencial”. Cada vez o mundo se movimenta por coisas funcionais, por atividades “essenciais”, por excessos de produtividade. O pensamento e a reflexão perdem mais e mais espaço num cenário que prioriza a hierarquia e a produtividade. E como eu acredito que a crítica, em essência, é colocar em crise, então ela não pode caminhar no mesmo rumo que todas as outras coisas. Tenho pra mim que, se a crítica for feita para “servir” a qualquer coisa, ela fracassa como crítica. E como fazer, então, o que você chama de “boa crítica”? Aí vai de cada profissional crítico, da forma como ele opta por se aproximar da arte e de seu contexto histórico e social e de como ele decide apresentar suas reflexões a um interlocutor ocasional. Crítica, a crítica MESMO, não é “opinião”; a subjetividade é um dos elementos de qualquer profissional na área, mas não pode, jamais, ser o único (até porque aí ele deixa de ser profissional). E, como qualquer ofício, a crítica demanda trabalho, estudo, labuta, prática, em diversas frentes. Hoje a crítica está em crise (quando não esteve?) e passa por um processo que eu confesso não saber muito bem ainda como lidar nem como identificar. Só posso dizer que é um processo irreversível e vai levar tempo pra entender que consequências isso trará.