Já comentei aqui que as entrevistas e a escolha dos entrevistados dessa pequena série acontecem por dois motivos: ou parte de um diálogo que eu já tive com o entrevistado, ou são perguntas que me vieram após ler seus textos. Parte das perguntas que faço para o Filippo Pitanga são frutos de debates que tivemos antes, outras são parte de questionamentos que tive ao ler os textos dele.
O Filippo é professor da AIC, membro da ACCRJ e colabora com diversos veículos, além de ministrar diversos cursos sobre cinema.
ENTREVISTA
Euller Felix: Você sempre fala sobre o quanto é importante estudar as leituras não hegemônicas quando estamos falando de cinema. Você pode explicar um pouquinho o motivo de você achar isso importante?
Filippo Pitanga: Em primeiro lugar, porque a própria crítica é composta de um lugar simultaneamente individual e coletivo, e, como lugar de um indivíduo que se insere no coletivo e se retroalimenta do quadro maior onde se insere, é inevitável e ao mesmo tempo necessário haver uma porosidade de trocas entre estas duas instâncias. Senão seríamos os mesmos indivíduos sempre e veríamos o exato mesmo filme eternamente.
Da mesma forma, assim como não somos compostos de um coletivo de iguais, mas sim justamente de diferenças complementares, estamos imersos em diálogos a partir do momento em que criamos relações, sejam relações com os filmes, com o público ou mesmo com outras pessoas da crítica. A crítica é um labor relacional. E relacionar é criar perspectivas a cada novo intercâmbio de ideias, de ideologias e mesmo de diferenças no espaço-tempo — um mesmo filme pode mudar de acordo com que os anos passam ou que ele viaje para circunstâncias diferentes.
Sair disso sem quaisquer perspectivas novas seria empobrecedor. Independente do nível de profundidade destas diferenças, sejam geracionais, étnico-raciais, de classe, sexualidade, territorialidade ou quaisquer outras. Mas, como diria Chacrinha, “quem não se comunica se trumbica”.
Euller Felix: Você está no mestrado agora, você pode falar um pouco sobre as diferenças entre a crítica quando nos propomos a refletir sobre um filme que acaba de ser lançado da crítica acadêmica? Você está sentindo alguma dificuldade?
Filippo Pitanga: Eu sempre reitero para alunos de crítica que o viés jornalístico implica um imediatismo bastante intuitivo e mergulhado na urgência (do filme e das razões pelas quais ele foi feito no meio social de onde provém), enquanto que um viés mais acadêmico pressupõe a passagem do tempo e ampliação de conexões e referências históricas… O decurso do tempo não é obrigatório, pois uma análise acadêmica pode ser realizada a partir de algo com mais urgência também, mas ainda irá se debruçar de modo mais seguro em validações pregressas, de modo a que o sustentáculo necessite de mais núcleos consolidados do saber, como autores publicados, teorias estabelecidas e análises estético-críticas mais difundidas…
Quanto mais esta partilha comum de uma comunidade de signos, como diria Rancière, receba apoio de mais fontes e comprovações práticas da teoria, mais sólida (e aos mesmo tempo engessada), poderá ser a legitimidade da fundamentação acadêmica. E isto não quer dizer que o lado acadêmico da crítica seja mutuamente excludente do lado jornalístico, pois um pode se beneficiar do outro, e emprestar ferramentas de análise e de maior segurança ou maior urgência, respectivamente, de acordo com a necessidade. São dois lados da mesma moeda, mas que podem suprir pontos cegos recíprocos, já que a consolidação às vezes inibe o olhar para o novo e para o risco em meio ao acontecimento espontâneo, bem como a temeridade do instante muito à flor da pele pode fazer pressuposições vazias ou instáveis, voláteis, que podem se auto consumir e se extinguir muito rapidamente como fogo de palha.
Portanto, ao mesmo tempo que a crítica jornalística pode ajudar a trazer temas mais prementes e tangentes às necessidades contemporâneas, da mesma forma o lado acadêmico pode auxiliar a consubstanciar as assertivas temerárias com mais teorias creditadas onde basear pilares sólidos para erigir novas acepções.
Euller Felix: Como professor de crítica de cinema, o que você percebe em relação aos novos críticos?
Filippo Pitanga: Muito relativo. Parte da sua pergunta pressupõe quem passa por mim como alunos e alunas, ou seja, como testemunha ocular transformadora ativamente da história em andamento. E parte disso atravessa a resposta apenas como um observador passivo, que apenas pode depor do que vê e que não detém qualquer controle sobre circunstâncias muito maiores do que apenas as consequências de alguns atos dirigidos dentro de uma pequena bolha de causa e efeito.
Como professor, pode-se dizer que a procura aumenta para cursos que ampliem a visão de representatividade do cinema, pois cada vez mais as turmas entendem o audiovisual como forte ferramenta democratizadora do acesso à cultura e ao próprio fazer autoral da arte. Ou seja, quanto mais pluralidade se sente representada pela arte, mais procura fazer arte, e mais procura que a crítica possibilite olhares de análise que incluam e absorvam experiências antes talvez excluídas ou esnobadas de certa forma pelo meio… Ou seja, quanto mais os professores forem abertos a trocas, e ao poder da escuta de vivências alheias à sua própria bagagem, podem, inclusive, ampliar o seu próprio acervo de olhares com o diálogo constante numa posição horizontalizada, aproveitando o lugar do debate para desafiar noções pré-concebidas e fissuras nos campos previamente estabelecidos de saber hegemônico.
Porém, com o desmonte das políticas públicas para as artes, e independente de quem passa diretamente por sua classe ou não, o que se vê é uma divisória de duas polaridades extremamente opostas nos acontecimentos, tanto do lado já previamente citado de engajamento e abertura das diferenças e pluralidades, tanto de outro mais conservador e enrijecido, de modo a temer as novidades como se estas fossem culpadas pela insegurança imposta à bolha cultural.
Portanto, como observador ocular de uma história muito maior do que aquela em que podemos calcular as consequências de nossos atos, o que se vê em geral é que para toda ação se gera uma reação, e parte da crítica se silencia perante as mudanças com medo de que elas a engulam ou lhe desnaturalizem aquilo pelo que começaram suas crenças para começo de conversa… Quando, na verdade, a inação ou omissão só abrirá mais espaço para o recrudescimento de um campo minado que mira acabar com o senso crítico, além de abraçar certa homogeneização cultural, como se apenas uma verdade única ou unidimensional fosse mais fácil de lidar do que infinitas possibilidades, e esquecendo que a crítica nasceu justamente para isso, pois só através da proliferação das diferenças espelhadas na obra é que esta pode eternamente se atualizar e se tornar de fato imortal.